sábado, 4 de janeiro de 2020

RECONCILIAÇÃO E DESPEDIDA


De Walter de Sá Leitão sobre João Lins Caldas

Há cinco anos, mais ou menos, o velho e amigo João Lins Caldas limitara nossa amizade a saudações e cumprimentos simples e – não poucas vezes – estas cortesias eram para ele um constrangimento. 

Por muitos frequentara a nossa casa, diariamente, sentindo-se à vontade, contando-me dramas da sua vida, atitudes que tomara em certos e determinados casos, especialmente como funcionário público, e, por fim, recitando seus formidáveis poemas e sonetos. Na sua espetacular inteligência, havia um ponto característico dos poetas – “as imaginações” – que lhe produziram um gênio tempestivo e absoluto para viver, anormalmente, entre os seus semelhantes. Uma simples conversa que divergisse do seu ponto de vista, em relação especialmente a determinadas pessoas, era o bastante para multiplicar o número dos seus desafetos, acrescido do dialogante. Reconhecendo-o POETA, sonhador, portando, jamais considerei suas denúncias, acusações ou julgamentos aqueles por quem se dizia prejudicado. Isto lhe causava um mal estar, cujos efeitos eu minorava contando-lhe anedotas picantes, piadas, impúdicas e ele, o velho Caldas, sem arrefecer os ódios, retira-se anotando-me no seu caderno como um indigno, também. Distanciava-se de mim, torcia caminhos para não me encontrar, porém eu o procurava, intrometia-me nos ambientes onde ele comparecia e, assim, ia amenizando sua intolerância, sem conseguir modificar suas sentenças. 

Como poeta era sublime, vibrações, divinais; um disco de sonatas infindas que quanto mais se ouvia, mais desejos se tinha de continuar ouvindo. No cotidiano da vida, era humano...

Ontem, dia 18, as seis horas da manhã, caminhávamos em direção ao Mercado Público, quando, em frente à Padaria Santa Cruz, os nossos caminhos cruzara-se e eu, na minha teimosia para tê-lo amigo, provoquei o diálogo:

- Bom dia, Frutilândia!...
- Bom dia, Walter, preciso falar com você.
- Caldas, voltarei logo para lhe atender.
Voltei minutos depois, indo encontra-lo na Praça da Criança, comprando uma espiga de milho verde. Ao ver-me reiniciou o diálogo:

- Walter, você tem recebido notícias ou carta de Moacir?
- Não, depois da última estadia aqui não me deu notícias nem me escreveu.
- A mim, também não. Parece que está zangado porque não lhe dei resposta às últimas cartas. Mas, vou respondê-las. Preciso demais comunicar certos desejos e, fatos da minha vida, sobretudo porque o meu fim está chegando e só a ele poderei contar, sabe!
- Caldas, a sua saúde, como vai? Tem tomado os remédios e seguido a dieta?
- Não, comecei a tomar umas pílulas, porém as suspendi. Depois de liquidar meus negócios irei cuidar da doença. O meu mal são estas coisas...
- Tens ouvido ou lido alguma coisa?
- Ouvido, não, Caldas, porém estou lendo um grande livro sobre Hermes Fontes, escrito por Povina Cavalcanti e dirigido por Afonso Arinos de Mélo Franco.
- Ah! Quero vê-lo. Preciso ler. O Hermes, como já lhe contei, morreu rompido comigo. Hoje, ou melhor, depois é que, reconheci ser um mal entendido meu. Seria fácil, Walter, emprestar-me este livro, agora?
- Pois não, Caldas, vou mandar busca-lo.
Minutos depois, chegava o portador trazendo o livro.
- Pronto Caldas, aqui o livro.

Com o livro às mãos começou a folheá-lo e, ao deparar em uma das páginas o retrato de Hermes, fitou-o bem e exclamou: “Hermes! Hermes!... Breve a nossa reconciliação espiritual.”

Despedimo-nos, ele saiu com o livro na mão e a cesta na outra. Partiu para completar a sua feira e, horas depois, completava também a sua vida atribulada de poeta e sonhador.

DEUS o tenha lá, com menos imaginações humanas!

Assu, 19 de maio de 1967

Do blog: Este depoimento de Walter de Sá Leitão encontrei entre os grandes versos de Caldas, dos seus livros organizados em manuscritos, antes sobre a guarda do poeta e publicitário no Rio de Janeiro - JMM Publicidade -, João Moacir de Medeiros  já falecido, que era primo de Caldas pelo lado da família Lins Caldas de Ipanguaçu/Assu. Antes de sua morte, Moacir autorizou que me fosse entregue os originais dos versos de Caldas, além daqueles que já foram entregues ao Conselho Estadual de Cultura/RN. São belos poemas e sonetos dos livros que Caldas não teve o privilégio nem a felicidade de publica-los, intitulados de “Deus Tributário”, Águas de Sono" e "Caminho de Estrelas", entre outros, além de centenas de pensamentos filosóficos. Fica o registro.

Fernando Caldas

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