quinta-feira, 2 de julho de 2020

MÃOS DADAS
março 31, 2018
Em tempos de intolerância, gritos engolindo argumentos e as diversas impossibilidades de diálogo, é importante um momento de pausa e de tentativa de entendimento do que somos, como indivíduo, como grupo. Cada poeta, dentro do seu próprio contexto histórico, deseja ser voz de algo para além de si. Alguns cantam a coletividade do seu povo e de sua história, como Camões e Euclides da Cunha. Outros, cantam o amor interno projetado em amor literário, como Camões e Florbela Espanca. Outros criam obras de grande engenho e arquitetura, pelo jogo de palavras e linguagens, como Camões e Olavo Bilac. (Sim, Camões está em tudo, mesmo quando não está).
Nesse sentido, antes de punhos fechados em ira, invoca-se aqui a busca de Carlos Drummond de Andrade pela compreensão de sua “missão” (se é que há uma) e de seu trabalho (que é um, sendo muitos). Em “Mãos dadas” (publicado em Sentimento do mundo, em 1940), há uma tentativa de autodefinição, tanto pela negativa, quanto pela afirmação, e é no equilíbrio entre ambas que se revela a função da arte, do artista e do homem que pensa e sente.
Sem mais, vamos a ele:
MÃOS DADAS
(Carlos Drummond de Andrade)

Não serei o poeta de um mundo caduco
Também não cantarei o mundo futuro
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história
Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes
A vida presente
***

O poema é curto, mas o caminho é longo.
Todo ele se constrói em negações (voltadas a si) e constatações (apreendidas dos outros). As duas estrofes, numa visão um pouco ligeira, poderiam se distribuir em: poeta sobre o mundo; poeta sobre si mesmo. Mas claro que o poeta estará no mundo, e o mundo estará no poeta…

Logo no início, nos dois primeiros versos, há uma limitação temporal: o poeta não se voltará ao tempo já passado, nostálgico e enganoso (“mundo caduco”), nem a um “mundo futuro”, igualmente enganoso e utópico. Como se estivesse entre duas miragens distantes e sedutoras, o poeta desvia-se e mantém-se “preso à vida”, ao agora diante dos companheiros.

Essas pessoas todas, como ele, indivíduos no mundo, “estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”. O olhar do poeta para eles obedece a um movimento exterior e interior: por fora, vê-os tristes, fechados, recolhidos; mas sente que, por dentro, cada um conserva ainda uma esperança possível.

Para tentar resolver essa dualidade e, além disso, enfrentar a realidade (enorme) e o presente (grande), Drummond só vê uma saída: não nos afastarmos e irmos de mãos dadas. O título então se revela, precisamente no verso do meio do poema, tornando-se o ponto central do olhar do poeta. É preciso ir de mãos dadas, unidos, para que haja esperanças.

A segunda estrofe, por sua vez, desloca-se para uma forma de metalinguagem, isto é, sobre o que o poeta escreveria. Por certo que isso é feito com muito mais espaço em “Procura da poesia” (que deve ser lido!), mas aqui, pelo “Não” contínuo que inicia boa parte dos versos, Drummond prepara justamente o que fará.

Todas as ações decorrentes do “Não” mostram-se como fugas. Cantar uma mulher ou uma história, os suspiros ou as paisagens imóveis da janela são temas poéticos que se esquivam de encarar o mundo. A mulher será a musa elevada, a história será de um passado ou de uma imaginação, os suspiros terminam em si mesmos e as paisagens apenas revelam o mundo lá fora, sem envolvimento. Os entorpecentes são meios de sair da realidade, ao menos por instantes, e as cartas de suicida sugerem essa súbita ruptura com a vida. A poesia pode ser isso, desejo de fuga, mas isso, para o poeta, não resolveria nada. Seria tão útil quanto fugir para “as ilhas” (como isolamento físico) ou esperar que “serafins” o raptassem (e levassem para onde?).
Por isso que, buscando aproximar-se daqueles que o acompanham, define sobre o que falará e agirá: o tempo. Havendo aqui uma série de conjunções, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Assim, o tempo, os homens e a vida são as coisas que realmente importam.

O poeta quer isto: as mãos dadas com todos, não para viver numa realidade paralela e ilusória, mas sim para levantar as esperanças, encarar a realidade e impulsionar o tempo presente e a vida presente.

Os leitores também devem querer isso. Saber que cada leitura age diretamente sobre si e, a partir disso, alguma coisa se deve modificar. Saber, também, que um livro não tem qualquer poder sobre o mundo. Mas as pessoas que leem, essas têm muito. Especialmente quando vão de mãos dadas.

E pronto!       

Por Saulo Gomes Thimoteo


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