Um visionário
Canções sinfônicas ao amanhecer:/
a bandinha interiorana,/
composta de músicas do povo,/
toca à janela/
para os meus ouvidos/
cansados.
Toca, toca, bandinha!
Vem me acordar/
todas as manhãs/
pra que eu possa/
viver eternamente/
esse instante fugaz.
Eduardo Gosson. O ciclo do tempo.
Quase não acreditei quando recebi, às 08h00min do dia 18 de fevereiro deste ano de 2022, a notícia da morte do escritor Eduardo Gosson. Não estava em Natal, ou melhor, no Rio Grande do Norte. Tinha acabado de despertar naquela manhã de sexta-feira. Adquiri o hábito, como a maioria das pessoas nos dias atuais (assim, creio), de ler as mensagens no aplicativo de comunicação instantânea WhatsApp numa estratégia de obter informações em tempo real.
A ex-presidente da União Brasileira de Escritores-seção RN, Tereza Custódio, com quem de vez em quando me correspondia, fora a mensageira:
Meu primeiro gesto foi responder-lhe a mensagem em busca de dados complementares sobre o ocorrido, o que procurou atender-me na medida do possível. Esclareceu-me a causa: Covid-19. Eduardo havia contraído a moléstia em decorrência de uma urgente internação hospitalar para tratamento de uma pneumonia que o levara à desidratação. Deixou-nos, portanto, aos 62 anos. Iria completar 63 em junho. Em nossos tempos, um óbito nessa idade é ainda, por incrível que pareça, tido como precoce. Fiquei “sem chão”, como se diz, impossibilitado de até despedir-me daquele que foi um verdadeiro militante da cultura do RN. Primeiro, em razão da distância; segundo, devido à pandemia em curso, pois ir ao velório, ou mesmo ao sepultamento, seria um enorme risco, tendo em vista de que convivo com uma pessoa portadora de comorbidades.
Dizem que, ao se ter ciência da partida de alguém rumo à eternidade, especialmente em se tratando de um alguém mais ou menos íntimo, a pessoa relembra vários momentos ao lado desse alguém. Como eu sou um memorialista por natureza (mesmo ainda não tendo tido coragem, nem idade para assumir tal ofício) uma tempestade de lembranças invade o meu cérebro por meses e meses até não conseguir mais resgatar do subconsciente nada mais importante que possa ser registrado. Assim, decidi escrever sobre o autor em questão.
Nascido em Natal/RN, em 01 de junho de 1959, Eduardo Antônio Gosson era de família libanesa que aportou no Brasil no ano de 1925, após 21 dias dentro de um navio, estabelecendo-se na região Nordeste, mais precisamente em Maranguape/CE (são esses os informes colhidos dos principais jornais culturais do RN, bem como de livros e sites sobre o autor). Cinco anos depois, houve a mudança para o Rio Grande do Norte. A atividade jornalística iniciou-se ainda no ensino médio, à época 2º grau escolar, junto com os colegas, editando jornais alternativos como Equipe e O letreiro. Em seguida, veio a editoração do suplemento Contexto, pertencente, naquele período, ao jornal potiguar A República. Este encarte costumava sair aos domingos e, às vezes, aos feriados. Além de poeta, jornalista, historiador e memorialista, Eduardo Antônio Gosson era sociólogo de formação acadêmica. A formação universitária, claro, fê-lo adotar, desde cedo, um posicionamento político-ideológico de esquerda, atuando, desse modo, também na política sindical aproximadamente nos anos 80 e 90.
No meio de tudo isso, veio a literatura. E a poesia foi o seu norte. Seu primeiro trabalho, publicado nessa área, ainda nos anos 90, foi o livro O ciclo do tempo. Sucederam-se os seguintes: Poemas das impossibilidades (2007) e Entre o azul e o infinito (2012). Outrossim, incursionou-se na pesquisa histórica, colaborando com a preservação do patrimônio do Poder Judiciário Estadual, a partir do final dos anos 90, ao lançar em livro a sua História do Poder Judiciário do RN e, na sequência, em 2005, Ministros Potiguares. Com o reconhecimento de uma parte desse trabalho, viria a se associar ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte em 1999. Ademais, tal iniciativa fez com que Eduardo Gosson assumisse a diretoria do Memorial Desembargador Vicente Lemos, anexo do Tribunal de Justiça do RN. Foi neste último espaço que o conheci pessoalmente no ano de 2011. Dias antes, pesquisando sobre literatura do Rio Grande do Norte, encontrei na web o site da União Brasileira de Escritores – seção RN, e ele era o presidente. Recordo-me que telefonei para o escritor Alexandre Abrantes, sócio-efetivo, com quem tenho amizade até hoje, e pedi-lhe dados sobre a referida entidade cultural cuja matriz é em São Paulo, mas que possui filiais em todos os estados da federação. Tive a promessa de que uma indicação, para tornar-me membro da UBE/RN, aconteceria. No entanto, talvez, o excesso de compromissos, já tomados, deve ter impedido que tal ação se consolidasse, e eu acabei tomando a liberdade de ir sozinho apresentar-me a Eduardo. Também me recordo da cena, chegando ao 1º andar do Memorial Desembargador Vicente Lemos, onde, naquele ano, funcionava a presidência da UBE-RN. Assim que deixei o elevador de acesso, após ter sido orientado por um dos vigilantes quanto ao caminho que deveria percorrer, logo dei de cara com a sala da presidência. Num birô largo, de madeira de lei, encontrava-se o escritor. Parecia que estava à espera de alguém enquanto conversava com um colega seu, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, o genealogista e historiador Ormuz Barbalho Simonetti, o qual, anos mais tarde, exerceria o cargo de presidente da aludida entidade centenária.
─ É Pedro? ─ dirigiu-se a mim logo que me viu entrar.
─ Não! É Paulo ─ corrigi sem saber direito o motivo de ele me ter nomeado assim. Possivelmente, esperasse um Pedro. O fato é que a circunstância foi até um pouco cômica.
Desculpou-se pelo equívoco, e eu, pedindo licença, comecei a falar à medida que também fui me sentando numa cadeira ao lado da que estava sentado Ormuz, antes, é claro, tendo o cuidado de pedir permissão. Prontamente atendido, manifestei o interesse em associar-me à UBE-RN, afirmando que era escritor, mas que ainda não tinha livros publicados. Por um instante, achei que isso seria um impedimento e já ia desanimando diante desse pormenor. Eduardo, de súbito, pegou um documento que era a ficha de inscrição do associado e entregou-me.
─ Aqui está! Deverá preencher e devolver-me depois.
Surpreso com o ato, acrescentei-lhe que possuía trabalhos engavetados e nenhuma condição financeira de publicá-los. Foi quando me falou do selo editorial que a UBE-RN estava criando: Nave da palavra, que adiante editaria os meus primeiros livros. Outro projeto em curso era o Concurso Literário Prêmio Escritor Eulício Faria de Lacerda, que premiaria em dinheiro os dois primeiros colocados, além de uma publicação do trabalho do primeiro colocado. Eduardo era um educador e empreendedor. Enxergava longe boas ações sociais, mesmo que algumas delas não viessem a se materializar por falta de apoio do poder público e do poder privado. A verdade é que ele tinha boas intenções. Idealizador de um lugar ao sol para o artista potiguar, sobretudo para o escritor, sempre procurou dar visibilidade à literatura do RN. Firmou parcerias com gráficas para que o selo editorial Nave da palavra funcionasse (o que em parte ocorreu); a criação de um curso sobre literatura do RN para professores da Rede Pública Estadual de Ensino, diretamente ministrado nas dependências da Fundação Hélio Galvão, dirigida pelo filho do então advogado e historiador, o poeta e ensaísta Dácio Galvão; parcerias com outras entidades culturais para que cedessem espaço a reuniões da diretoria executiva, como foi com a Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANRL), onde os associados puderam lançar os seus livros pelo respectivo selo editorial; com livrarias, dentre elas a extinta AS Book Shop, no bairro de Lagoa Nova, em Natal, a fim de que promovessem encontros literários. Dessa empreitada, surgiu o projeto Letras potiguares. Consistia em debates sobre obras e autores do RN. Eu mesmo tive o privilégio de participar de uma das edições em 2003. Nesta noite, Avelino de Araújo e Falves Silva, os adeptos do poema concreto e do poema processo dos anos 60, foram os homenageados; porém, só o último compareceu. Eduardo, mesmo ainda sem nos conhecermos pessoalmente, coordenou com afinco a sessão na livraria. Não cheguei a falar com ele. Só tive a chance de conhecer, nesta mesma noite, Falves, sempre muito bem-humorado, Jania Souza e Marcos Cavalcanti; os dois últimos pertencentes a uma entidade cultural que eu viria a integrar anos mais tarde: a Sociedade dos Poetas Vivos & Afins do Rio Grande do Norte (SPVA-RN). Lembro a gentileza de Marcos convidando-me, desde aquele ano, a associar-me à SPVA-RN; contudo, somente em 2012, já servidor público federal, é que eu daria também esse importante passo na direção do sonho de ser escritor.
Por falar em 2012, foi por ali que eu, aos 31 anos, lancei o primeiro livro: No ventre do mundo. Um ensaio literário agraciado com o 1º lugar no ano anterior (2011), no Concurso Literário Prêmio Eulício Faria de Lacerda, citado acima. Em sessão solene, na Academia Norte-rio-grandense de Letras, na noite de 24 de outubro de 2011, obtive das mãos de Eduardo Gosson o certificado e a quantia em cheque. O escritor e dramaturgo Racine Santos, nacionalmente conhecido por seu trabalho na história do teatro, ficou em 2º lugar. Depois, soubera que este, em tom de brincadeira, confessaria em discurso, perante a mesa acadêmica, a sua surpresa pelo resultado, uma vez que ficara atrás de um jovem, à época, no apogeu dos seus 30 anos. Tudo se deu durante o Encontro Potiguar de Escritores, um evento todo ano organizado pela UBE-RN.
Lançamento do livro “No ventre do mundo” na Academia Norte-rio-grandense de Letras – 08 de agosto de 2012. Ao lado do autor, Eduardo Gosson, convidados e o escritor e Presidente da Sociedade Brasileira de Dentistas Escritores Rubens Azevedo.
O que assinalo aqui é apenas um breve testemunho da experiência ao lado de um homem grande, um visionário. Um homem que cometeu muitos erros e muitos acertos como todo mundo. E principalmente: nunca se traiu quanto aos seus ideais. Infelizmente, foi pouco tempo de convívio. E apesar das modestas divergências que nós dois tivemos, manteve, até o último suspiro, sua posição diante do mundo e do Brasil. Foi generoso com os outros, até mesmo com as novas gerações de escritores, sempre incentivando seus talentos. Há muito ainda a ser escrito sobre a figura de Eduardo Antônio Gosson, o que espero fazê-lo em projeto ainda em maturação. Agora, entrou, como costumava dizer, “na Nau da eternidade” para seguir seu destino junto aos seus, com a certeza de que cumpriu, em parte, a sua missão na terra. Vai, amigo! E tenhas a convicção de que se depender de muitos daqueles que reconhecem o valor do teu ser e da tua obra para o RN, tu jamais serás esquecido. Boa viagem!
Por Paulo Caldas Neto
Fonte: Portal Grande Ponto
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