Capítulo final do ensaio Ferreira Itajubá o drama da vida de província (OTHONIEL MENEZES Obra Reunida, no prelo)
Ele próprio, Ferreira Itajubá, desventurado Lucien Chardon sem David Sechard e sem D Arthez,3O4 intercalara no ofertório do seu mavioso poema tão generosamente hipócrita a íntima evidência da verdadeira verdade, grito de naufragado do barco alvissareiro em que não quis partir, na hora mais propícia:
Trinta e quatro anos tenho, entre escolhos, vivido,
sofrendo angústias cruéis. Ah! que tempo perdido!
Fui muito néscio em crer nos pregões da ventura.
Nunca um astro fulgiu, na imensa noite escura
que a areia me invernou da estrada dolorida.
Que resta hoje a teu filho? a sombra espavorida
do cipreste esgalhado, onde o mocho agourento
pousa de ramo em ramo, ao cair do relento...
.....................................................................
E nem quero um letreiro à compaixão futura.
um sinal, uma cruz, no pó da sepultura...
Realmente nenhuma dessas postiças, curiais, inanimadas exteriorizações póstumas, mais ou menos irônicas, mais ou menos desmoralizadas pela rotina, mentira sacrílega para a comédia do egoísta e do soberbo, tardio laurel para o holocausto do herói ou do santo, poderia, jamais, corresponder à altura condoreira e ao sereno fulgor da glória do grande felibre.305
Não se tivessem malogrado, tão dolorosamente, os altos desígnios trazidos do berço, bem coerente lhe fora, como aconteceu a Thummel, 306 célebre poeta alemão, cujas cinzas repousam dentro do tronco de um carvalho centenário, na sua cidadezinha natal de Noeblenitz se se tivesse reintegrado com a Natureza, a que tanto amou e cantou docemente, pelo harmonioso, incorruptível intermédio das raízes, da seiva e das flores de um desses veneráveis pau-darqueiros dos nossos morros, contemporâneos das suas canções inimitáveis.
Nenhum poeta do Rio Grande do Norte, em todos os tempos, mais do que ele, mereceu o símile307 do epitáfio escrito por Antípatro,308 o coríntio, em honra do divino evocador de Ílion:309
Aqui jaz Homero. Que dizes? Sabes tu, acaso, se ele
jaz aqui ou
além, na terra ou no mar? Homero está aqui e além,
está no ar que
passa. E aí tens, viajante, o motivo porque respiras
poesia no ar que
passa. Deixa-me, pois, escrever Aqui jaz Homero,
que morreu em
plena mocidade, porque morreu poeta.
Na hora suprema da bela tentativa migratória, a ele e a nós outros, há muito comprometidos, irremissivelmente, na sinistra farsa das competições ideológicas e da concorrência à feira das mesquinhas vaidades distritais, enleados na trama pragmática e delirante da conquista da caloria, mutuando310 hostilidades e mexericos de zeladoras: incompreendidos e incompreendendo, habendo vendido nuestro derecho de primogenitura por um plato de hechos,311 faltou-nos a voz galvanizadora e cordial de Walt Whitman, conclamando os pioneiros:
Sai dos negros limites, sai de entre as cortinas!
Vem! O caminho está aberto à nossa frente!
Que as folhas fiquem abertas sobre a escrivaninha,
e o livro sem abrir no seu armário!
Que os instrumentos permaneçam nas oficinas!
Que o dinheiro permaneça sem ser ganho!
Que repouse a escola! Não importam os brados dos
mestres!
Que o pregador pregue em sua cátedra!
Que arrazoe o advogado no tribunal, e o juiz exponha
a lei.
Camarada, dá-me a tua mão!
Eu te dou meu afeto, mais precioso que o dinheiro.
Eu te dou a mim mesmo, em vez de prédicas e de
leis.
Queres dar-te a mim? Queres seguir comigo?
Seguiremos juntos, um ao lado do outro,
enquanto durarem nossas vidas!
Alerta sempre! Sempre para frente!
Esta, entretanto, é a voz de um poeta, e tão cedo não poderia ser percebida, sob o clamor do colossal mercado onde poderíamos lobrigar, num ângulo momentaneamente livre do angustioso aperto da multidão desvairada no delírio da traficância, a sombra sarcástica do velho Ibsen,312 os óculos na ponta do nariz rubicundo, a anotar no seu canhenho313 pessimista: Vejo ventres, mãos, cabeças, mas não vejo um único homem na terra.
Na terra onde é furiosamente importante a gente ilustrar, em sessão contínua, o
Rien me moblige à faire un livre,
mais la raizon moblige à vivre...314
Perdoa a essa raça de víboras, Ferreira Itajubá, que há trinta e cinco anos, estás emancipado do demônio do struggle for life,315 desta ...necessidade de horroroso, que é talvez propriedade do carbono,316 conforme dizia com a sua dilacerante experiência de convívio com as feras humanas, Augusto dos Anjos, ainda aduzindo uma escusa biológica para a malvadez dos que te apodavam de poeta!
Foste derrotado na praça, entre os sub-homens do acerbo ironista de Espectros, por que não trocaste tuas barras de ouro pelas moedinhas de cobre que eles fazem circular, no câmbio da exaltação das mediocridades bem-aventuradas. Mais a hora dos Poetas chegará. O Dinheiro não pode salvar o mundo. E vale a pena ir passando fome. Sursum corda! 317
Caído em extrema penúria, ao cabo de sofrimentos físicos e morais incomportáveis; egresso do presídio, onde diariamente provou o chicote dos guardas, expiando por toda a humanidade, conforme confidenciou a Cécile Sorel,318 o incomparável lapidário de O Retrato de Dorian Gray foi levado, pelos últimos devotos, a um dos mais luxuosos nosocômios de Paris. Moribundo, apático, ruína lancinante do maravilhoso espírito que encarnara o Vivian de A Decadência da Mentira,319 a olhar em roda os cristais, os imaculados reposteiros de linho, o brilho e o grande ar de conforto burguês,
do leito em que jazia, ele, que fora o mais festejado, o mais invejado, o mais impertinente dos dândis da pátria de Brummel,320 gravando nas vitrinas das joalharias, com o diamante do anel, os nomes das arquiduquesas conquistadas, exclamou, dolorosamente: Morro como sempre vivi: acima das minhas possibilidades... Viveu, e morreu, infinitamente abaixo das suas possibilidades, antítese enervante, o Bernardim321 potiguar.
Tinha também amigos, como aconteceu à onça da gostosa inventiva humorística de Péricles Maranhão.322 Que o não cercaram, na hora trágica da adversidade; não o levaram a nenhum hospital onde houvesse morrido como Wilde. Amigos, daqueles, nos Quatrains Moraux que Guy de Faur, senhor de Pibrac,323 comparava a melões:324
Les amis de lheure présente
ont le naturel du melon:
il faut en essayer cinquante,
avant den rencontrer un bon.325
Ora, pois. Entre esses quarenta e nove melões do Sr. Pibrac, um havia cujo coração, todo de mel, estaria agora a secretar tintura de losna,326 serodiamente compenetrado de que, político na maior evidência, deputado federal de fulgurante expressão no país, amigo íntimo e conselheiro de Alberto Maranhão, teria podido, a um simples aceno, mudar o aspérrimo declive ao drama excruciante.
Não estamos formulando acusações gratuitas.328 Nem nos compete, por igual, espicaçar velhos remorsos hibernados. São bichos feios e bravios, a rosnar baixinho nos bolorentos subterrâneos, nas criptas sumerianas dessa deusa ignota, a que os casuístas do espiritualismo deram o vago apelido de consciência. E, por bichos serem, já nos bastam Santo Deus! os que, vez por outra, na penumbra confessional daquela paragem de introspecções e flagícios,329 nos olham nos olhos e nos arreganham as fauces.330 Por que, então, iríamos cutucar tigres, assanhar lobisomens, cloroformizados, nas jaulas alheias?
Sem nenhum vínculo estomacal com qualquer dos partidos atualmente propostos a fazer do Brasil um formal paraíso jeffersoniano, externamos de própria conta uma verdade conhecida de todos os contemporâneos de Itajubá, e até agora por ventura apenas congelada em homenagem ao preconceituoso imperativo de conveniências que, a propósito do assunto, aliás, já o escritor José Bezerra Gomes331 começou a destruir, submetendo a vigoroso critério histórico o estudo do caso. Conveniências, afinal, somente respeitáveis no consenso daqueles cujo honestíssimo Ideal é o de vencer na vida, embora engolindode que só travestidos de Orontes e Felintes atingirão a bem-aventurança dos diretores de bancos, dos ministros, dos empresários de pife-pafes...
Voltando aos melões: foi, aquele ardente admirador333 de Ferreira Itajubá, no Rio, quando parlamentar, uma espécie de cônsul da boa vontade, acolhedor, generoso, acessibilíssimo, amigo ideal (diz-se que a amizade é o ideal, e que os amigos são a realidade).
Quem teria definido tão bem o que Montaigne tanto exaltou? Amigo ideal, concedamos, de todos os comprovincianos334 em apuros, e aos quais distribuía todo o subsídio, mesmo aos que não rezavam pela cartilha do abaeté335 Pedro Velho. É este um dos prediletos argumentos com que se explica, vez por outra, sua notória pobreza.
Diga-se, todavia, francamente e para não perder esta oportunidade mal chegou a tempo para os funerais do poeta; funerais de terceira classe...
E para escrever, anos muito depois, com muita emoção, a história do pária sublime, que viveu toda a sua pobre e atribulada vida, sem que mecenas, pelo prestimoso, altruístico, tão viável intermédio dos seus convivas, tivesse jamais notícia daquela iníqua indigência mancha vergonhosa, escárnio sem nome, infamante exceção, em meio às benesses de que se propiciavam os mais felizes, às pingues336 propinas liberalizadas aos mais espertos: tertúlias e saraus de gala, paradas resplandecentes, jogos florais, a borbulhar à tona dessa famosa era da nossa Renascença social, artística e literária, sintetizada na esplêndida estampa centralizadora de Alberto Maranhão.
Notas de Laélio Ferreira:
304 Chardon, Sechard e D Arthez. Personagens de Balzac em Ilusões Perdidas (1843), volume fundamental da Comédia Humana, considerada a obra capital dentro da obra do grande romancista.
305 Poeta da escola provençal do século XIX.
306 Moritz August von Thummel (1738-1817). Poeta satírico, contista eadvogado alemão. Sob influência de outro poeta germânico, Christoph Martin Wieland (1733-1813), escreveu 10 volumes de uma Viagem Sentimental às Províncias da França nos anos 1785-1786”. Foi elogiado por Schiller (1759-1803), importante poeta, dramaturgo e filósofo alemão.
307 Qualidade de semelhante; comparação de coisas que tenham similitude entre si.
308 Antipatro de Sidon (Século II a.C). Poeta e escritor grego, autor de epigramas, contemporâneo de Catulo e de Crasso. Escreveu, também, o epitáfio de Anacreonte e a ele é atribuída a primeira relação das sete (número mágico, entre os gregos) maravilhas do mundo. Morreu muito velho. Foi mencionado por Cícero.
309 Ílion. Um dos nomes de Tróia. O nome da Ilíada, o poema de Homero, é derivado dessa palavra, a forma portuguesa do grego Iliás, vindo pelo latim da Ásia Menor. Divide-se a obra em 24 cantos, contendo 15.000 versos hexâmetros. Apesar de seu argumento ser extraído da famosa guerra troiana, não a narra por completo.
310 Trocar entre si (tratando-se de mais de um indivíduo ou coisa, ou de coletividades); permutar, reciprocar.
311 Vendendo nosso direito de progenitura por um prato de coisas (Ver Gênesis 25:29-34: Jacó com um prato de lentilhas comprou a primogenitura de Esaú, seu irmão.).
312 Henrik Johan Ibsen (Skien/Noruega, 20.03.1828-Kristiania/Noruega, 23.05.1906). Teatrólogo nórdico, considerado um dos criadores do teatro realista moderno.
313 Caderneta, registro de lembranças, diário.
314 Nada me obriga a escrever um livro/mas a razão me obriga a viver Jean de la Fontaine (Chateau-Thierry/França 08.07.1621 - Paris, 13/ 04/1695). Poeta e fabulista francês.
315 Luta pela vida.
316 Versos do poema Monólogo de uma Sombra, do Eu e outras poesias.
317 Corações ao alto!, expressão latina. Ver nota ao poema Estâncias, em Jardim tropical, neste volume.
318 Céline Emilie Seurre, condessa de Ségur (Paris/França, 07.09.1873- Trouville-sur-Mer, Calvados/França, 03.09.1966). Com o nome artístico de Cécile Sorel foi atriz famosa e uma das mulheres mais bonitas da França, uma celebridade mundial. Legendária, apresentou-se no Rio e no Teatro Municipal de São Paulo, aos 65 anos de idade, com sua grande companhia de comédias.
319 A Decadência da Mentira. Ensaio de Oscar Wilde, publicado em 1891.
320 George Bryan Brummel (Londres/Inglaterra, 1778-1840). Fidalgo inglês, representava o supra-sumo, a quinta-essência da elegância masculina. Foi o máximo expoente do dandismo. Gastou tanto com roupas, adereços e penduricalhos que morreu pobre.
321 Bernardim Ribeiro (Torrão/Portugal, 1482? - 1552?). Poeta e escritor renascentista. Pertenceu à roda dos poetas palacianos, juntamente com Sá de Miranda, Gil Vicente e outros. Teria freqüentado a corte de Lisboa, colaborando no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende.
322 Péricles de Andrade Maranhão (Recife/PE, 14.08.1924-Rio de Janeiro/RJ, 31.12.1961). Desenhista e humorista brasileiro de grande sucesso nos anos 1940 e 1950. Em outubro de 1943, a revista O Cruzeiro começou a publicar os cartuns do Amigo da Onça, que se transformaria, durante dezessete anos, num dos personagens mais populares do país. Alcoólatra, atormentado, solitário, Péricles suicidou-se, num final de ano, abrindo a torneira do gás, num apartamento de Copacabana. Antes do ato extremo, afixou na porta um cartaz no qual se lia: Não risquem fósforos.
323 Guy du Faur (1529-1584). Senhor de Pribac, jurista, diplomata e poeta francês.
324 Quadras Moralistas.
325 Os amigos da hora presente são como os melões: para encontrar um bom, há que se experimentar cinqüenta (Pribac). Quadra semelhante é atribuída a outro poeta francês do mesmo século, Claude Mermet, nascido em 1550, com ligeira variação: Amigos são como melões; devo te dizer porque? Para encontrar um bom você precisa provar cem.
326 Absinto. Sentimento de tristeza; amargura (sentido figurado).
328 OM, pela idade, não logrou interagir com Itajubá. Era, este, 19 (ou 20) anos mais velho. No entanto, conhecia-lhe as agruras, o que lhe acontecera no Rio de Janeiro, pois foi amigo de dezenas de companheiros, de íntimos do poeta de Branca. E havia conhecido, pessoalmente, de longe, seu ídolo Manoel Virgílio Ferreira. Em textos inéditos que produziu para este ensaio preciosidades hoje em poder do autor destas notas, que não sabe porque seu pai não os publicou , um desses revela a juvenil admiração que tinha pelo cantor da Barcarola. Em 1908 (ou 1909), aos 13 ou 14 anos de idade: [...] durante uma passeata de operários da Great Western em greve [escreveu OM], vimo-lo, ovacionado freneticamente, assomar a uma das janelas do sobrado da Estação, transfigurado, a fronte escantoada [que tem os ossos muito salientes; ossuda], formosíssima, iluminada pelos divinos eflúvios do gênio, aqui e ali engasgado pelo escachoar dos vocábulos, bradando para a praça onde o povo fervilhava [...]. OM sabia, por exemplo, que muitos anos depois da morte do vate, existia no Bairro Anchieta, logradouro da comunidade operária das Rocas, uma célula de estivadores do PCB, antigos companheiros, com o nome de Ferreira Itajubá. Na sede do núcleo comunista enquanto esteve na legalidade o partido do senador Carlos Prestes -, o retrato do tribuno fundador da Liga Operária Norte-Rio-Grandense ali estivera, ao lado das grandes figuras representativas do credo marxista. Nessas anotações inéditas, OM revela, também, outro fato importante sobre Ferreira Itajubá no Rio de Janeiro: Henrique Castriciano lhe contara que o poeta, num encontro, confessou achar-se em preparativos e entendimentos, junto a um certo prócer em oposição ao situacionismo pedrovelhista, para vir fundar um jornal de combate, e derrubar a oligarquia.
329 Infâmias, opróbrios, ignomínias; torturas, tormentos, flagelos.
330 Gargantas, goelas.
331 Ver nota no Sertão de espinho e de flor, neste volume.
332 Alceste, Felinte e Oronte. Personagens de Molière, na peça O Misantropo. Alceste é, na obra, um homem revoltado com a sociedade hipócrita e tortuosamente simples em que se insere.
333 Eloy Castriciano de Souza. Deputado federal de 1895 a 1914. Ver Notas ao Canto 15, do Sertão de espinho e de flor.
334 Que ou os que são da mesma província que outros.
335 Homem bom e de palavra; forte, grande, bruto.
336 Polpudas, vultosas, consideráveis, fartas.
Postado por Fernando Caldas