Por Tádzio França e Cinthia Lopes
Comer e beber, além de necessidades físicas, também são indicadores culturais de sociabilidade, evolução e história. O cenário gastronômico natalense é uma boa prova disso: se hoje em dia oferece de tudo ao toque de um aplicativo, há pouco menos de um século era movido apenas a álcool e petiscos simples. Sair de casa para comer era, antes de tudo, um ritual social e masculino. Ao longo do século, o menu natalense foi ganhando identidade, tamanho e diversidade, refletindo as mudanças de sua época. Claro, como é típico deste local, tudo em ritmo bem vagaroso. A degustação histórica é lenta, mas pode ser saborosa.
Natal entrou no século XX com vontade de superar o acanhamento colonial que vigorava até então em sua vida social. Os anos 1900 trouxeram uma praça glamourosa para a época, o teatro e o cinema, portanto, a capital potiguar não poderia mais viver de serenatas, modinhas, piqueniques e passeios à praia com a família. Os cafés e bares foram os primeiros estabelecimentos a darem algo mais ao natalense. Lugares para ir após o trabalho, encontrar os amigos, conhecer pessoas novas, discutir os assuntos do momento, beber e comer coisas diferentes.
Os primeiros ‘happy hours’ da vida natalense se desenrolaram entre os bairros da Ribeira e Cidade Alta. Eram esquinas e cruzamentos que se tornaram símbolos de um tempo. Na Ribeira, tudo de melhor acontecia entre a Avenida Tavares de Lira e a Rua Dr. Barata; no centro, a badalação convergia para o ‘Grande Ponto’, como ficou conhecida a área entre a Rua João Pessoa, a Avenida Rio Branco e a Rua Princesa Isabel.
Imóvel da Av. Tavares de Lira tem um passado ligado à vida boêmia, do Cova da Onça ao Carneirinho de Ouro Foto: Rogério Vital
A Ribeira concentrava o maior número de bares, bilhares e cafés da cidade, lugares como o Café Socialista (1903), Café Chile (1916), Cova da Onça (1916) e o Bar Antártica (1921). Durante as primeiras quatro décadas do século XX, a Ribeira era oficialmente o bairro mais elegante de Natal. Esses estabelecimentos eram anunciados em jornais da época como “esteios da civilização”, na linguagem pomposa e exagerada do começo do século passado.
A professora e historiadora Viltany Oliveira, autora do livro “Cantos de Bar: sociabilidades e boemia na cidade de Natal (1946-1960)”, afirma que esses novos points eram apostas da elite natalense para refinar e modernizar a sociedade local. “Eram espaços de sociabilidade para as elites natalenses, interessadas em avançar aos padrões de elegância e civilidade, qualidades essenciais para a cidade ir adiante na condição de capital moderna”, explica.
Os cafés logo se tornaram refúgios de funcionários públicos, profissionais liberais, políticos, empresários, estudantes, jornalistas, escritores, poetas. E como eram esses locais? Segundo o cronista João Amorim Guimarães, os cafés da Ribeira eram “ricamente instalados em salões decorados a capricho, com mobiliário de luxo, prateleiras artísticas, mesas de mármore verdadeiro, garçons bem trajados, limpos, sociáveis, polidos, distintos e educados”.
A Rotisserie Natal foi, nos anos 20, também um lugar elegante para a época. Foto: Rogério Vital
Arteculinarista
Muitos endereços passaram à história, como a Rotisserie Natal, prédio número 20 da Tavares de Lira. O lugar, que já abrigava os ilustres locais, também recebeu em 1928 o escritor modernista Mário de Andrade em sua passagem pelo estado. O momento está registrado no livro “O Turista Aprendiz”. Mário deve ter consumido queijos, presuntos, e bebidas nacionais e estrangeiras. Também deve ter apreciado o ambiente, que segundo as descrições tinha dimensões amplas e iluminação elétrica. A Rotisserie também procurava inovar, como quando trouxe um ‘arteculinarista’ português para caprichar no cardápio.
Rotisserie Natal anuncia o "arte culinarista" português Alfredo. E a "Despensa natalense" sortida para as festas
Outro lugar célebre, o Cova da Onça, era um misto de café, bar e bilhar, onde se podia degustar bebidas nacionais e importadas. O Café Chile, situado na Travessa Aureliano de Medeiros, além do cafezinho oferecia caldo de cana, refrigerantes, aperitivos e sucos. Já o American Bar se destacava pelo sorvete, feito de “pura nata”. Não há dúvida que era artesanal. O cinema Politeama, inaugurado em 1911, tinha serviço de bar e sorveteria. Das sete às 18h, os bares ofereciam café, queijos, sucos e lanches. À noite, os cafés tornavam-se espaços boêmios. No cardápio saíam grogues (bebida de rum, água e açúcar), cervejas, fritadas, lombo de porco, galinhas e filés.
Grande Ponto
A Cidade Alta também não deixava barato no quesito boemia e diversão. Nos anos de 1920 e 30 existia no bairro o Café Grande Ponto, na esquina da Rio Branco com a João Pessoa, uma mercearia com serviço de bar e duas mesas de bilhar. A popularidade desse espaço acabou por batizar toda a área. Os cinemas, as confeitarias, as sorveterias, os cafés e os bares mais badalados estavam no Grande Ponto.
No final do Século XIX, o prédio da Ulisses Caldas foi o Café Potiguarania, Pharmacia Natal, Café Magestic e Royal Cinema
Um dos espaços de lazer mais antigos do bairro era o Café Magestic, localizado na esquina da Rua Ulisses Caldas com a Vigário Bartolomeu. Antes, no local funcionou o Café Potiguarânia, em atividade desde o final do século XIX. Apesar de ter um salão de bilhar, ficou mais conhecido como ponto da boemia literária da época. Era um dos lugares favoritos de Câmara Cascudo.
Os estabelecimentos da região vendiam cafés, cerveja, grogues, aguardentes, fritadas de camarão ou de caranguejo, petiscos de galinha ou de carne de porco, picles, embutidos, azeitonas, e o popular fiambre, (uma carne fria em conserva similar a um presunto). O jornalista Alexandre Gurgel, chef e pesquisador, ressalta que se ia mais aos cafés para beber e conversar do que para comer, daí os cardápios serem tão simples. E a época também era outra. “Nada refinado, a gastronomia aqui estava no início. O fornecimento também não era grande coisa, então só tinha isso, coisas rápidas, petiscos”, diz.
O Polytheama funcionou na Ribeira, um dos endereços mais movimentados do bairro
O Grande Ponto tinha ainda a Confeitaria Helvetica, o Bar e Confeitaria Cisne, Bar e Café Expresso, Restaurante Prato de Ouro, Bar Dia e Noite, o Café São Luiz, e o Bar e Confeitaria Granada, este, do espanhol Nemésio Morquecho, que apresentou aos natalenses da década de 50 iguarias ainda inéditas por aqui como lula na tinta, testículos de boi, paella, iscas de fígado acebolado, ostra crua, e outras ‘tapas’. O Granada funcionou de 1954 a 1975, na Av. Rio Branco, recebendo ilustres como Monteiro Lobato e o príncipe Philip. Em 1975 o bar virou o restaurante Nemésio’s, e existe até hoje, agora no Tirol.
Confeitarias
Naquele cenário comercial emergente, as chamadas confeitarias eram espaços que também ganhavam cada vez mais território. Elas se caracterizavam por comercializar artigos de confeitaria e lanches. Eram lugares frequentados por famílias e estudantes que paravam pra comprar bombons, “confeitos” e doces. Uma das mais badaladas e bem sortidas era a Confeitaria Delícia, na Praça Augusto Severo, Ribeira. Vendia bombons, chocolates, frutas, presuntos, queijos, vinhos, e produtos importados. Na década de 40 foi acrescentado um bar, onde se bebia cerveja, conhaque, macieira, além de aperitivos como empadas e pastéis.
Confeitarias e cafés anunciavam nos jornais seus atrativos e produtos para festas
Menu mar e terra
Até meados do século XX Natal não tinha uma identidade culinária. Esta começou a ser moldada aos poucos pelo aparecimento de bares e restaurantes populares que destacavam determinados tipos de prato: a peixada e a carne de sol. “A gastronomia de Natal se polarizou no início entre o litoral e o sertão. As peixadas, que ofereciam os peixes e os pratos à base de frutos do mar, inicialmente mais peixe e camarão (lagosta só muito tempo depois), e as carnes assadas, herança do pessoal do interior”, afirma Alexandre Gurgel.
A Ribeira era o mais comercial dos endereços e concentrava hoteis e restaurantes
As casas de peixada foram as primeiras a se destacar na incipiente paisagem culinária da capital. Para Alexandre é um fato óbvio, já que por Natal ser uma cidade litorânea havia a oferta abundante de frutos do mar. E foi no próprio Canto do Mangue que surgiu a Peixada da Comadre, em 1931, até hoje a maior referência no assunto. O peixe cozido com legumes e ovos e servido com pirão virou um símbolo local. Em 1950 a casa já era uma referência entre a elite e a classe política da cidade, o que elevou ainda mais sua moral. Em 1956 Newton Navarro escreve a crônica “Peixe”, inspirado no restaurante. A Peixada saiu das Rocas e se firmou na Praia dos Artistas, até hoje.
O sucesso da Comadre fez surgir outras peixadas na esteira, como a Peixada do Chorão, em 1960, ainda em funcionamento na praia de Areia Preta. A Peixada Potengi, na Tavares de Lira, Ribeira, foi point dos boêmios, pois também era bar e ficava aberta 24 horas. “O pessoal ia curar a ressaca com um caldo famoso que tinha por lá”, diz Alexandre. O chef também lembra da Peixada do Caindão, que frequentava com a família na praia de Miami, próximo a Areia Preta.
Na outra ponta, também crescia a popularidade dos restaurantes de carne assada. Os dois mais conhecidos ficavam nas Rocas: a Carne de Sol do Lira e a do Marinho. “Eram as mais procuradas pela sociedade natalense quando saíam de casa pra comer. Os políticos também gostavam de fazer suas reuniões por lá”, diz Alexandre. O restaurante foi criado em meados dos anos 50 por Júlio Lira da Silva, paraibano comerciante de carne de sol autêntica. A venda logo virou restaurante, e o prato, sua marca registrada: carne com farofa d’água, macaxeira, feijão verde, salada e arroz. De Rita Lee a Luiz Gonzaga, todo mundo aprovou.
Famosa foto dos militares americanos na varanda do Grand Hotel. Após a guerra, o restaurante se manteve em alta entre a elite local, sendo ponto de encontro político. Foto Michel Ochs/ Getty Images
O jornalista Woden Madruga afirma que seu paladar foi moldado pelas peixadas e carne assadas que surgiram dos anos 50 em diante. “Não havia ‘points’ naquele tempo, a vida social era pequena, então era fácil a gente assimilar o que surgia na hora”, diz. As casas populares que se destacaram ajudaram a formar a identidade da culinária natalense e até mesmo potiguar, acredita Woden. Para completar o cardápio popular, o restaurante Casa de Mãe, também nas Rocas, pôs a galinha cabidela na rota da badalação culinária da cidade. A casa ainda existe, mas sem o peso que teve no passado.
Até a década de 70, os restaurantes mais refinados de Natal estavam nos hotéis. Woden lembra do restaurante do Grande Hotel, que mesmo depois da 2ª Guerra, se manteve em alta entre a elite local, sendo ponto de encontro político. Os almoços eram concorridos, assim como o jantar, mesmo fechando cedo. Havia trilha sonora ao vivo no piano. No menu, o filé mignon e a feijoada eram bastante pedidos.
Alexandre Gurgel ressalta que as cozinhas dos restaurantes de hotel eram as mais requisitadas para eventos políticos, como os jantares, que eram oferecidos para prefeitos, governadores, etc. “Quando eles faziam reuniões maiores recorriam aos restaurantes dos hotéis da cidade, que eram poucos e se concentravam basicamente na Ribeira”, diz.
O Grande Hotel já era uma antiguidade quando o Hotel Reis Magos abriu as portas em 1965, na Praia do Meio. Woden ressalta que era seu lugar favorito para almoçar no domingo. O restaurante era aberto para passantes, e a badalação era grande. A cozinha era comandada pelo chef – ou mestre-cuca, como se dizia – Alfredo Machado da Silva, cujos filhos Nelson e Azel abriram o café Machado, nas Quintas. De lá trouxeram iguarias setentistas como fricassê de frango com aspargo, taça de camarão crocante ao molho, filé flambado, entre outros.
“A cozinha e os profissionais do Hotel dos Reis Magos foram sem dúvida alguma, a maior referência para a gastronomia refinada, a alta gastronomia da época em Natal”, diz Alexandre. O chef ressalta ainda a importância da Toca do Chicão, no Aeroclube, onde muitas famílias iam para almoçar. Nos anos 70 também surgiu o Xique-Xique, que segundo Woden Madruga, “mudou parâmetros” no roteiro culinário da pequena cidade. Trouxe refinamento, pratos franceses, e outras iguarias. Segundo ele, o restaurante se alinha com expansão do turismo em Natal. O Xique-Xique funcionou até o início dos anos 2000. Daí em diante, houve a explosão da cena gastronômica natalense como a conhecemos atualmente.