Assim como a maioria das pessoas nos dias de hoje, faço terapia cognitivo-comportamental. É uma forma de aprender a controlar a ansiedade que tenho e que herdei de familiares. Não é uma tarefa muito fácil num mundo cada vez mais problemático e exigente como o nosso. É de praxe eu chegar ao consultório do especialista, e ele me perguntar: “e aí, meu amigo, como estamos?”, e eu responder quase sempre: “caminhando, amigo… Porém…”. Este último vocábulo já é uma verde que eu jogo para tratarmos do que realmente vem me incomodando. E desse jeito, vamos levando a entrevista que dura em média 01h00min.
O engraçado é que, de vez em quando, no meio dela, eu acabo servindo de terapeuta para ele, e nós dois vamos trocando vivências até certo ponto comuns e divertidas. Na última sessão, a conversa girou em torno da crise ética e de valores que assola o nosso Brasil. Crise esta que se reflete também na escola, meu ambiente de trabalho. Segundo o psicólogo, estava ele deitado na rede da varanda do condomínio onde reside, lendo um bom livro, quando adolescentes, que se entretinham no salão de festas, começaram a ouvir uma música no estilo funk e a cometer atitudes estranhas. Eram três meninos e três meninas, possivelmente filhos de moradores da habitação coletiva. O relógio batia 0h00min. Como ele não costuma dormir cedo, acompanhou o episódio em tempo real.
Que alguns fãs do funk me perdoem pelo preconceito, mas o estilo pouco constrói valores positivos para uma sociedade carente destes, a começar pela qualidade das melodias e das letras produzidas. Daí, porque tenho que dar crédito ao gênio da Música Popular Brasileira, Milton Nascimento, “o Bitúca”, ao se expressar sobre o assunto: “A MPB hoje é uma merda!”. De acordo. Não há, infelizmente, outra qualificação. Tudo isso também é a representação de uma educação intelectual decadente. Que saudade da educação tradicional que a escola fornecia! Se funk é cultura, me desculpem, não consigo enxergar uma cultura que inverte valores como saudável na edificação do caráter humano. É uma verdadeira falácia que só engana idiotas. Os temas das letras do referido estilo musical só banalizam a mulher, o sexo, o casamento e o amor, mostrando conceitos controvertidos. E esse material todo ainda têm a parceira da grande mídia para disseminá-lo.
Mas voltando ao fato, a mim relatado pelo profissional. O embalo da música e o conteúdo da letra inspiraram um dos jovens, do sexo masculino, a dar tapas no rosto de uma das adolescentes que estava ali no salão, participando da festa. Isso mesmo, leitor, “dar tapas”. Ou seja, o texto verbal ensinava o homem a agredir fisicamente a mulher. Pelo menos, foi o que entendi do relato. A jovem começou a chorar e a desejar não mais integrar o grupo e a dança de pares que estava se desenvolvendo naquele instante. O agressor ignorava o sofrimento da vítima, sem a mínima noção da gravidade do ato. Continuou a dançar e a se divertir como se nenhuma inconveniência estivesse se desenrolando. E pior: as outras adolescentes consolavam a agredida, argumentando que a atitude do agressor era normal, e que as lágrimas dela não se justificavam. Convenceram-na a retornar à dança. Resultado: as agressões físicas permaneceram. Pelo visto, somente a adolescente agredida é que tinha ciência do tamanho de sua dor. Confesso que fiquei estarrecido e inquiri:
⸺ Onde estavam os pais desses jovens que não viram isso? ⸺ o psicólogo ficou mudo, sem resposta.
É uma irresponsabilidade, um abandono! Fico pensando: se a família não educa, não pune os próprios filhos, quem vai fazê-lo? A escola? Esta adora dizer que também não existe para punir, como foi o que ouvi uma vez de uma pedagoga com quem já trabalhei. Então, quer dizer que disciplinar é prejudicial à saúde mental da criança e do adolescente? Porque, nas entrelinhas, é o que quase se apreende desse discurso. Quem vai dar limites? A Polícia? A Justiça? Coitado desse jovem ao atingir a maioridade penal! Sofrerá as consequências de seus atos ao experimentar o rigor da lei ou a escuridão de uma cela. Isso, se não for antes vítima da própria violência. Não quero levantar um debate ideológico aqui como alguns até preferem; primeiro, porque não tenho compromissos dessa natureza; segundo, porque acho que a causa está além disso. Passa por políticas sociais eficientes para amparar a estrutura familiar falida e pela substituição de um modelo educacional que já deu sinais de desgaste. Claro que é uma tarefa a longo prazo. E com um Estado corrupto como o nosso, esse “a longo prazo” é tão longo que os resultados esperados nunca chegam. Vão tomando formas na sociedade um cansaço, uma insatisfação por tanta impunidade, criando, assim, um sentimento de “salve-se quem puder”.
A Constituição da República Federativa do Brasil é bastante enfática no seu art. 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Se uma postura compromissada, das instituições aludidas, deixar de existir, correremos um grande risco de vivermos uma metástase social. Tudo começa pela educação familiar, complementando-se na escola.
Ademais, nenhum dos dois lados pode se omitir sob pena de formarmos profissionais medíocres para o mercado de trabalho. Ao contrário do meu tempo de estudante, hoje, nem a escola, nem a família criam na criança uma cultura do dever. Brigam pelos direitos dos educandos, entretanto, esquecem-se de orientá-lo para o esforço. O argumento, conforme a pedagogia moderna, que teve como um dos precursores o teórico Paulo Freire, é a de se educar o cidadão para que este, desde cedo, adquira a sua autonomia. Ocorre que a criança ainda não é um ser autônomo, a menos que para atividades lúdicas. É preciso, como era no meu tempo, que os pais e a escola monitorem o estudo da criança, a fim de que esta se empenhe a, de fato, aprender; do contrário, ficará perdida, sem saber o que e como fazer. Como vou querer que um educando escreva se antes não o ensinei a escrever e, por sua vez, a ler? Como posso exigir que um aluno estude um instrumento musical se antes não o ensinei a tocá-lo e muito menos a teoria da música? São pressupostos até mesmo para que ele se torne um bom arranjador ou improvisador nessa área. Esses exemplos ilustrativos valem para qualquer outra analogia sobre o método de ensino-aprendizagem.
Pela ausência de uma cultura do maior esforço, a família chantageia a escola, cobrando-lhe facilidades na avaliação, apenas com o intuito de que os filhos sejam aprovados e um diploma, conquistado. Professores são ameaçados, desrespeitados, e o aluno, nesse contexto, vai aprendendo que a vida é fácil, que desacatar uma autoridade é o correto, e que os obstáculos devem ser mínimos. Com o aval dos familiares, não se submete a forte e necessária pressão da escola para o progresso de suas habilidades cognitivas, e o resultado é a frustração diante de uma enorme carga de responsabilidade que a academia, em seguida, irá lhe atribuir, uma vez que, no ensino superior, se forma o educando para uma profissão. Tal postura pressupõe que ele domine conceitos da educação básica, que o ajudarão na busca do conhecimento técnico a ser usado “na qualificação para o trabalho”, como bem observou o texto constitucional. Surgem as “crises existenciais” (algumas delas erroneamente classificadas de “depressão”) como desculpa para que o ambiente escolar dê os seus “jeitinhos”. O professor passa a ser, então, o culpado pelo fracasso do desempenho discente. O aluno é aprovado para o nível seguinte, mesmo com alguma deficiência no aprendizado, porque os pais e os governos entendem que a reprovação desmotiva e oprime. A consequência disso é que se acaba conscientizando o próprio alunado a pular etapas de aprendizagem, e as lacunas só serão sentidas mais tarde.
Pois é. O sistema educacional brasileiro, ao lado de uma total desestrutura familiar, tende a entrar em colapso em questão de anos. E não é exagero meu. Aos que optam por se iludir com uma metodologia de ensino moderna que fantasia a prática educativa, tudo o que argumentei anteriormente é insustentável e, com certeza, dirão que se trata de um educador que não deseja inovar. Ledo engano. Só os que deveras vão passar 30 anos numa sala de aula (e dela, em momento algum, se afastaram para exercerem outras funções burocráticas) é que a conhecem bem e são gabaritados para discorrerem melhor sobre esse conceito de inovação e sobre sua verdadeira funcionalidade. Podem, inclusive, atestar com suas múltiplas experiências em várias modalidades de ensino o quanto é penoso o fazer docente na atualidade. Estratégias de ensino-aprendizagem nem sempre podem ser vistas como um remédio para todos os casos. Temos tendência a generalizarmos a eficácia do método só porque logrou êxito em algumas situações, estabelecendo-se, desse jeito, uma grande farsa. Sejamos práticos: continuaremos a maquiar os efeitos negativos de uma educação “construtiva” ou assumiremos de vez esse câncer que só cresce a cada dia? A verdade é que nós, educadores e autoridades governamentais, estamos implodindo um sistema, sem sabermos exatamente o que estamos erguendo no lugar. Por ora, fixamo-nos na utopia.
Por Paulo Caldas Neto
Fonte: Portal Grande Ponto