O MENINO DOS PIRULITOS
Por Pedro Simões
O menino vinha pirulitando pelas ruas. E piruetava, também. Pulava num pé só e de lado, como fosse uma guariba. Só assim vencia sem cansaço os altos e baixos de Ceará-Mirim.
Segurava com aparente displicência a tábua de pirulitos. Mas era só na aparência. Na verdade, ali estavam o seu mealheiro, o café, o pão, o p...irão e o feijão. Um verdadeiro tesouro. A mãe, todo dia reforçava o pedido de cuidado e atenção com a mercadoria e ele cumpria a promessa – um olho no peixe, outro no pescador.
Era um menino muito franzino. Quando nasceu, era tão pequenino e desnutrido que a parteira, que já vira milagres e desgraças, pôs o caso nas mãos de Deus. Sobreviveu. Mas dera no que dera – aquela coisinha pouquinha e seca que mais parecia um bicho-pau, esse que parece um graveto seco e se confunde com os galhos das árvores.
Mas, a saúde e a disposição estavam dando para o gasto. Nem muito, nem pouco - na medida. Vez em quando recebia uns avisos de “bizurico” tomando chegada, quando a fome estava mais braba, ou quando saía de casa sem o café da manhã, mas era coisa ligeira e passageira.
A mãe, coitada, fazia tudo o que era possível para o sustento da família, desde a morte do pai. Passava e lavava roupa alheia em casa. Era dia todo à beira do tanque, ou à mesa, com o ferro de engomar esquentado pelo carvão em brasa, espertado pelos assopros de quando em vez, lutando contra a branquidão dos cabelos, as rugas e os vincos. Ver aquilo chegava à beirinha da crueldade, além de despertar uma enorme piedade da mulher.
O pai, motorista, morreu num acidente com o veículo. Logo depois da morte, por pouco tempo, o dono do caminhão quase que sustentou a família, ele, a mãe e uma irmã mais velha. Depois se desculpou e os deixou à própria sorte.
Aliás, sorte era um benefício que nunca tiveram. Depois que o patrão do marido os abandonou, a mãe ficou muito nervosa e passava os dias chorando. A comida foi ficando cada vez mais difícil, aí a irmã tomou o único caminho para ajudar a família: tornou-se prostituta, aos dezesseis anos. Nem gostava de falar nessa época, pois já era menino taludo, com onze anos de idade, solto nas ruas, aprendendo o que prestava e não prestava.
Talvez com o choque da trágica revelação, a mãe se recuperara e iniciara o negócio dos pirulitos e cocadas e dos serviços de lavagem e engomação. As cocadas tinham freguesia certa, duas ou três bodegas as revendiam. E ele tornou-se piruliteiro.
Com pouca instrução, só podia fazer algo assim. Quase treze anos, mal conhecia as letras do alfabeto, embora fosse bom de contas. Tinha de ser, para não ser enganado pelos fregueses. Aprendeu em casa a cartilha do ABC e a fazer contas na tabuada. A mãe repassara o que aprendera. Mais não podia, porque não sabia.
Escola, nem pensar. Não tinha roupa decente, nem sapatos e, além disso, precisava ajudar no sustento de casa. A irmã se amigara com um soldado de polícia que morava na cidade vizinha e abandonara a família por sugestão do seu homem – ou ele ou eles. Preferiu garantir o próprio sustento numa vida boa. Não a censurava. Só quem viveu com tanta dificuldade sabe o melhor para si.
E saracoteava pelas ruas da cidade, ora com um, ora com outro refrão:
“Pirulito, enrolado num papel
Enfiado num palito
chupa pobre, chupa rico,
chupo eu que também grito
E ainda fica p-i-r-u-l-i-t-o!”
Quando estava alegre, porque tivera um bom café, com tapioca, leite, pão e café, ou porque vendera toda a mercadoria, ou sonhara com passarinhos, cantava um refrão de época:
“Pirulito que bate bate
Pirulito que já bateu
Quem gosta de mim é ela
E quem gosta dela sou eu”
Botava mais entusiasmo nesse refrão, quando passava pela casa de uma amiga da mãe, que tinha uma filha de sua idade, muito da espevitada.
O lucro era pouco, mas era bom. O coco era de graça, tirado da casa do vizinho que tinha um sítio como quintal e ainda era aparentado com eles. A rapadura era de graça também, brinde de Pedro Teófilo capataz do Engenho Verde-Nasce. Só o açúcar era pago. E ele ficava até imaginando as injustiças do mundo. A sua terra produzia tanto açúcar que dava até pra jogar no mato, tal a quantidade de não sei quantos engenhos e usinas, e ainda carecia comprar...
O seu produto era coisa muito simples, quase ordinária, mesmo feita com tanto carinho. Um cone miúdo, marrom lustroso, pertinho do quase-transparente, enrolado com papel de embrulho que grudava no pirulito ao ponto de ser ingerido com a guloseima, e um palito extraído da palha do coqueiro. Depois, cada um era enfiado num buraco do apetrecho conhecido como a tábua do propriamente dito.
A rotina era seguida religiosamente. Morava perto da Rua da Cruz e então descia direto para a igreja. Lá, pedia a proteção de Nossa Senhora da Conceição e um ajutório nos negócios, e rumava para os pontos de venda. Cedinho, passava pelo Café de Cleto, descia para a estação no horário dos trens, subia para os arredores do mercado, e, finalmente, procurava a saída das escolas.
Geralmente vendia tudo, quando não, sobrava uns dois ou três que eram negociados a caminho de casa pela metade do preço - um quase nada melhor do que nada.
Quando alguém se interessava em conhecer a sua vida de piruliteiro, contava sem arrodeios a história de sua vida com lágrimas nos olhos e uma revolta nunca disfarçada que lhe fazia morder os beiços e mudar o tom da voz. Nesse particular, também era mal dotado. Tinha a fala fina e se comunicava aos gritos, hábito de quem apregoa no grito as mercadorias.
Mas no geral diário só tinha uma queixa: era o único moleque da cidade que não tinha apelido e por isso estava sempre sob desconfiança dos amiguinhos.
Um dia, nem começara a venda de pirulitos, foi assistir a um jogo de bola no descampado do cemitério, ao lado da igreja, por onde começava a sua rotina. Um bando de moleques mais ou menos de sua idade, uns dez, talvez, disputavam a posse de uma bola de borracha com brutalidade. Ás vezes até dava a impressão de que eles estavam mais determinados a chutar as canelas uns dos outros do que acertar na bola pra fazer o gol.
Outros meninos assistiam ao jogo e torciam pelos seus preferidos. De repente, dois deles começaram a discutir e um chamou o outro para a briga. O um estava com uma vara na mão. Chamou-o então para que segurasse a vara para não ficar em vantagem na briga. O piruliteiro repousou a tábua de pirulitos num arbusto e se dirigiu ao espaço da contenda.
Quando recebeu a dita vara, o menino que a entregara, puxou-a bruscamente, deixando-lhe na mão uma pasta escura e fedorenta em que descobriu fezes humanas. Tratou de retirar os excrementos, arrastando a mão no chão gramado, enquanto os dois meninos corriam.
Tratava-se da famosa pegadinha chamada de “pau de merda”, ainda desconhecida no seu aprendizado de rua. E teve sorte, porque uns malvados usavam cacos de vidro ou gilete no lugar do cocô.
O pior estava para acontecer. Quando foi buscar a tábua de pirulitos, encontrou o lugar limpo. Outro grupo de meninos aproveitara a circunstância e devem ter se regalado de pirulitos pela vida toda. A ruindade quando chegava era assim: além de queda, coice.
Quando chegou em casa e contou a estória, chorando que nem uma possessa, a mãe, entre uma e outra chinelada nos seus “quartos”, reclamava da sorte avara e da perda da taboa, mais do que os pirulitos.
Não dormiu naquela noite. Contou estrelas até de manhã, sentado num tamborete no terreiro defronte da casa.
Amanheceu com os dedos cheio de perebas, de tanto apontar para as estrelas.
Em compensação, ganhou um apelido: perebento.
Do meu livro, inédito, "Armadilha para pássaros e caçadores".
[Texto transcrito do Facebook de Pedro Simões]