Soneto de João Lins Caldas. Acho que publicado numa revista do Rio de Janeiro?
(Fernando Caldas)
Os festejos juninos chegaram no Brasil com os colonizadores: a quadrilha e outras danças caipiras, bem como o casamento matuto. No casamento matuto, os noivos, os pais dos noivos, o padre, as testemunhas são elementos introduzidos ao folguedo (pena que hoje quase que não se pratica mais essa brincadeira junina). Até a década de oitenta, se praticava. Na cidade de Assu, principalmente, era praticado. Até porque o Padroeiro daquela cidade é São João Batista. O casamento, no meu tempo, de juventude era realizado no Arraiá da Vovó Zulmira, uma pessoa muito querida na cidade de Assu, que organizava os festejos como o casamento matuto e depois a quadrilha como podemos conferir nas fotografias abaixo. Ah, velho tempo bom. Nas fotos. Eu, Fernando Caldas/Fan (o padre), Chico Dias e Iza Caldas (os noivos), Eugênio Pimentel, Uênia Cosme e Rosângela Dias, dentre outros. Tudo na maior brincadeira e ingenuidade. Data das fotografias, 1982.
(Fernando Caldas)
Chico Dias, o da esquerda na fotografia, ano 1982.
Francisco Medeiros Dias ou simplesmente Chico Dias ainda menino chega à cidade de Assu, procedente do Ceará, para morar com seu tio, não sei ao certo se pelo lado paterno ou materno, então comerciante na cidade assuense. No início da sua juventude revelou-se líder estudantil presidindo o grêmio do Ginásio Pedro Amorim, importante instituição escolar da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos – CNEG. Trabalha na camisaria do seu primo Oscar Fernandes e foi empresário em vários ramos da atividade comercial. Fundou no início da década de setenta, o Clube de Diretores Legista do Assu – CDL. Ativista político, foi candidato a vereador várias vezes e cabo eleitoral. Ultimamente era corretor de imóveis.
Chico Dias era tipo manso, estatura mediana, irreverente, boêmio, romântico, bom de papo e de copo. Tive eu, o prazer de com ele ter convido desde os tempos de minha adolescência. Ele viveu no Assu, terra que adotara como sua, quase toda sua vida e conheceu quase todo Brasil. Gracioso, espirituoso, querido e admirado pelo povo assuense. Ele tinha a resposta certa na ponta da língua em qualquer ocasião.
Chico era primo próximo de Ronaldo Ferreira Dias, já falecido, alto funcionário do Senado Federal. Ronaldo era natural de Lages e quando adolescente morou no Assu e era uma figura de ótima qualidade. Pois bem, nas eleições de 1982, amigo do presidente Figueiredo que aconselhou Ronaldo se candidatar pelo Partido Democrático Social - PDS, a deputado Federal, pois Ronaldo com qualquer votação seria o primeiro suplente daquela agremiação partidária. Veio ao Rio Grande do Norte fazer campanha e procurou o primo Chico que era candidato a vereador, para fazer sua campanha no Vale do Açu, juntamente comigo. Dito e feito. Dias depois, Ronaldo resolve retornar a Brasília. Da capital Federal telefona para Chico (Ronaldo era uma figura humana de ótima qualidade, influente, porém muito sisudo e a fotografia ‘santinho’ de sua candidatura não aparentava simpatia) e pergunta: “Chico, como vai a aceitação da minha candidatura por aí?” Chico foi taxativo: “Primo, sai hoje de casa com mil ‘santinhos’ seus, pelas ruas da cidade na busca de votos, e voltei pra casa com duas mil.”
(O certo é que Ronaldo assumiu como titular a cadeira de deputado federal em razão de morte do deputado Djalma Marinho, durante seis meses, final da legislatura, 1983). Obteve apenas, dois mil e poucos votos).
Em 1982, Chico candidatou-se a vereador. Certo dia fora procurado por uma certa eleitora, mulher de “Capuz” (apelido) que lhe pedira para tirar o seu marido da cadeia, pois teria sido preso pela polícia por se encontrar embriagado pelas ruas da cidade. Chico procurou o prefeito da cidade à época e não encontrou, o chefe político também não. Não teve outro jeito: escreveu num papelzinho um bilhete e orientou aquela mulher aflita que fosse a delegacia e entregasse ao delegado aquele bilhete com a seguinte inscrição: “Senhor delegado, Capuz é meu afilhado. Peço soltá-lo!” Assinado, o prefeito.” E Capuz foi solto.
Chico Dias não perdia as oportunidades para soltar um dito espirituoso. Pois bem, certa vez, fora convidado para fazer parte de um grupo que defendia o meio ambiente na região do Vale do Açu. Não deixou para depois, dizendo: “Aceito não! Mataram Chico Mendes, imagine Chico Dias.”
(Chico Mendes que Chico se referia era o ativista político e defensor dos seringueiros da Amazônia, assassinado em 1988).
Tempos atrás, foram instalados na cidade de Assu, mais um hospital e um cemitério público. Pois bem, numa das eleições para prefeito e vereadores, Chico fora convidado pelo grupo político do candidato a prefeito, ajudar na qualidade de cabo eleitoral com a promessa de um emprego comissionado. Passaram-se dias, meses, um ano, e nada de Chico ser nomeado naquela municipalidade. Certa vez, fora indagado por alguma pessoa “Chico, já foi nomeado funcionário da prefeitura? E o que você acha da administração do prefeito?” Chico respondeu: “A administração do prefeito está ótima. Agora, o emprego, ainda estou aguardando se vão me colocar no novo ou no velho!” Aquele amigo intrigou-se com aquela resposta e fez nova pergunta: "No Hospital?" Chico não se fez de rogado: "Não, amigo! No cemitério!”
Certa vez, no extinto Hiper Bom Preço, de Natal, estava eu e Chico Dias almoçando. De repente, um amigo advogado se aproxima. Naquele instante, apresentei aquele bacharel: "Amigo, apresento Chico Dias, meu conterrâneo.” “Muito prazer “Seu” Chico, o senhor é primo do deputado Álvaro Dias, de Caicó?” Falou aquele bacharel. Chico sem querer desfazer do Álvaro Dias potiguar, soltou essa: “Não, amigo. Sou primo de Álvaro Dias, senador pelo Paraná.” Era assim Chico Dias, mas tudo na simplicidade que lhe era peculiar.
Chico foi ao médico que lhe prescreveu vários exames. Cumprindo o que foi solicitado pelo clinico, Chico retornou ao consultório. O doutor constatou que ele, Chico, era portador de uma doença que poderia em poucos meses lhe trazer complicações se não fosse tratado, rapidamente. O médico então perguntou: “Seu Francisco, o senhor tem plano de saúde?” “Não, doutor.” Responde Chico. O médico fez nova indagação: “Mas, por que o senhor não tem plano de saúde?” Chico sem nem pestanejar, respondeu: “É porque não tenho plano de morrer!”
(Essa estória também se atribui a Josué Dantas, figura muito conhecida na cidade de Assu).
Por fim (as tiradas de Chico incontáveis). Perdeu o Assu, no último dia 14 de junho de 22, mais uma figura do folclore “Papa Jerimum”, como se diz no Nordeste brasileiro. Perdão meu amigo, por não ter comparecida a sua última despedida. Mas tenha certeza que o Assu que você tanto amou, ficou mais pobre e deserdado do dom que Deus lhe deu, de dizer num repente, suas poucas e boas.
Pena que você amigo Chico Dias, encantou-se logo no primeiro dia dos festejos do Padroeiro do Assu, São João Batista. Creia-me que chorei ao tomar conhecimento da sua partida, do seu encantamento
A última vez que vi Chico Dias, fora no leito de um hospital em Natal, há uns dois ou três meses atrás. Ao receber minha visita, não esqueceu de perguntar pelo amigo de longas datas Paulinho Montenegro. Chorou duas ou três vezes. Depois me disse que teria colocado algumas estórias ocorridas entre eu e ele, em seu livro sobre estórias pitorescas que ficou inédito.
Que você durma Chico Dias, o sono dos justos. Até o nosso reencontro no além!
(Fernando Caldas)
O cantador - é bom deixar bem claro - não é cantor, aquele que apenas
canta, chamado de intérprete. Há conotações e peculiaridades próprias
que identificam o CANTADOR, que, além de cantar, faz de improviso os
versos com que trabalha. Canta, compõe, cria e produz. Quando aparece
nas recomendações gramaticais, cantador é adjetivo: O pássaro cantador, o
carro-de-bois cantador, etc. No caso de poeta repentista, violeiro, se
diz CANTADOR e se usa como substantivo - o cantador. É o poeta da viola,
o repentista, uma arte que só se concilia com o cantador. E são
cantadores todos os poetas violeiros, improvisadores, repentistas,
produzidos por este Nordeste que, através deles, viu nascer e morrer
cantando as dores e as alegrias suas e de seu povo.
Encontramos em Guerra Junqueiro, um dos mais nobres poetas portugueses,
contemporâneo de Camões, no prefácio que fez a um trabalho de um de seus
confrades, intitulado O Cantador de Setúbal - uma referência que
glorifica esse profissional. Ele diz: "Que título augusto, que nome
ideal para um vivente - O Cantador! Que nome ideal para um destino!
Cantar o riso, o beijo, o olhar, a dor e a lágrima. Como eu te invejo,
cantador!"
Em Orlando Tejo, autor de Zé Limeira - O Poeta do Absurdo, vemos o que
constitui a glorificação do poeta improvisador: "Os cantadores
constituem imensa legião de homens que cantam, sonham, sofrem e brincam
de viver no mundo, pescando estrelas, caçando ilusões, plantando tardes,
colhendo manhãs, levando a sua mensagem sutil e profunda, tímida e
vigorosa, ao povo ávido de poesia que os ouve embevecido".
Perpetuaram-se, na literatura do Nordeste, como cantadores, nomes que
honram a nossa cultura, cantando e escrevendo, como: Fabião das
Queimadas, Romano da Mãe Dágua, os irmãos Dimas, Otacílio e Lourival
Batista, Zé Pretinho do Piauí, Cego Aderaldo, Oliveira de Panelas,
Manoel Calixto, Eliseu Ventania, Chico Traíra, os irmãos João, José e
Sebastião Zacarias, Alípio Tavares, José Alves Sobrinho, Inácio da
Catingueira, Severino Ferreira, Zé Limeira, Cândio Cambão, e tantos que o
tempo levou, mas deixaram sucessores que honram a sua memória. E estão
ainda por aí: Ivanildo Vilanova, Antônio Francisco, Crispiniano Neto,
Antônio Sobrinho, Joaci Zacarias, Alípio Tavares Filho, Paulo Varela, os
mais próximos de nós, e uma legião de outros que transmitem literatura
tradicional, consagram a nossa cultura e dão ao Nordeste brasileiro a
sua roupagem para acesso aos centros culturais, às academias hoje
existentes no Brasil e alhures. Está aí Antônio Francisco, membro da
Academia Brasileira de Literatura de Cordel, com muita honra para o Rio
Grande do Norte e para o Nordeste brasileiro.
E o ritmo, o estilo não é um só. Há os tipos de conjunto de versos,
nomeados de acordo com a técnica, o ritmo, o diapasão, o tema, o número
de versos, o número de sílabas, que têm padrões, características e
melodias próprias, porém tudo sem fugir ao referencial que é CANTORIA e
seus artistas são CANTADORES. Cantador ou cantoria se refere
exclusivamente ao produtor e ao produto da improvisação em versos
rimados, cantados sob diversas formas: desafios, chamados pelejas, como a
do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Piauí, Riachão com o Diabo, na
cidade de Açu, epopéias históricas, trágicas ou cômicas, como Os Doze
Pares de França; romances e amores locais ou de outros horizontes, como a
história do Pavão Misterioso; e uma antologia de louvações ou de
críticas ao cotidiano. São apresentados, geralmente, em duplas de
cantadores ou em unidades isoladas, que se esmeram no ritmo, na rima, na
métrica e no palavreado, um linguajar próprio, tudo dentro dos padrões
da cultura local.
O tipo de versos, de acordo com a formação e a melodia é que identificam
o sistema que pode ser baião, martelo, galope, quadrão, sextilha,
sete-linhas, mourão, mourão-em-sete, você cai, mourão voltado, quadrão
em oito, quadrão em dez, quadrão à beira mar, martelo alagoano,
gabinete, toada alagoana, oitava rebatida, nove palavras por seis,
gemedeira, galope à beira-mar, martelo agalopado e glosa. São as
principais formas como se apresenta a cantoria no Nordeste, onde nasceu,
e se espalhou hoje pelo Brasil inteiro.
Manoel Bandeira, o grande autor de VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA, certa
vez, em Pernambuco, depois de ouvir um festival em que se apresentavam,
dentre outros não menos famosos, Dimas e Otacílio Batista, confessou,
contrito, a sua incompetência, diante daqueles gênios, e publicou, em
1937:
"Vi cantar Dimas Batista,
Otacílio, seu irmão.
Quer a rima fosse em inha,
Quer a rima fosse em ão,
Caíam rimas do céu,
Saltavam rimas do chão.
Tudo muito bem medido
No galope do sertão.
Saí dali convencido
Que não sou poeta não".
CÂNDIO CAMBÃO - Irreverente, porém poeta
Quem conhece a literatura hoje chamada de cordel sabe que os versos não
se limitam a quadras, a sextilhas, ou a alguns outros padrões isolados
da poesia universal. O Cantador, como é chamado o poeta repentista, pode
fazer seus versos de acordo com as circunstâncias e exigências do
momento. O seu universo se restringe ao Nordeste brasileiro.
Antigamente, quando se falava em versos ou estilo alexandrino, não havia
dúvida. Tratava-se do soneto - aquele poema inconfundível, de 14
versos, alinhados em dois quartetos e dois tercetos. Ainda hoje, quando
se fala em trova, todos sabemos que são estrofes de quatro versos, de
sete sílabas cada verso e todos os quatro com rimas do primeiro com o
terceiro e do segundo com o quarto.
CÂNDIO CAMBÃO, nunca se soube se teve, de batismo ou de registro, outro
nome ou sobrenome. Também nunca foi obrigado a exibir documento de
identidade. Sua identidade era a viola que representava o grande poeta
repentista da Várzea do Açu. Era um tipo especial. Apresentava-se nas
funções com uma viola maltratada, porém super afinada. Vestia um paletó,
que não tinha mais cor original, mas que, pelas dobras de baixo da gola
dava a impressão de haver sido branco. Estava sempre de pés descalços.
Abraçava carinhosamente a sua viola, com veemente apreço, por quem
demonstrava raríssima e incondicional afeição. Impunha-se pela
personalidade, pela altivez de seus versos, mesmo irreverentes; pela
liberalidade de sua poesia; pela intimidade com a população; pela
auto-suficiência dos temas e dos motes que glosava num improviso sem
titubeios; enfim era um beradeiro autêntico, um poeta sem fronteiras e
sem preocupações com os estilos ou com a censura.
Nas memoráveis cantorias que estrelou, sozinho ou acompanhado, tinha por hábito abrir os trabalhos com estes versos:
Eu aqui me chamo Cândio
Por apelido Cambão,
Moradô no Logradô,
Manicípo do Alemão
Se não tem com que me pague
Eu recebo inté feijão.
Sabe-se que tinha dois filhos. Um, chamado Pascoal que às vezes aparecia
cantando com ele e um outro, chamado Juvenal, que vivia de fazer
recados, e de entregar encomendas a troco de um pão doce que recebia
como recompensa. Quando era solicitado para uma empreitada dessas,
perguntava ao empreiteiro como queria que fosse: de avião, de
motocicleta, de caminhão ou de cavalo. Conforme a preferência do
mandante, ele saía de Porto do Mangue para a Redonda, uma distância
aproximada de 20 quilômetros, exibindo a posição do transporte em que
imaginava estar viajando. Se fosse de avião, ele iria de "asas abertas"
desde a origem até o destino. Às vezes, o dono da encomenda perguntava a
viajantes que o encontravam no percurso e recebia informações de que o
haviam encontrado na mesma posição usada ao iniciar a jornada.
Andarilho, nômade, sem origem e sem destino, pernoitando onde lhe
permitissem arranchar-se, Cândio Cambão, tendo por companhia apenas a
sua viola, aceitava desafios e convites para cantorias, sem preferência
de temas que podiam ser história, geografia, política, religião, as
asperezas e as ternuras do varzeano, enrolava tudo no seu linguajar. Às
vezes, até debates conhecidos por PELEJAS, em que se discutiam em versos
rimados e metrificados, discorrendo sobre a conduta, os atributos e o
currículo pessoal, em que os desaforos de parte a parte tinha a
preferência da platéia.
Não costumava ser chamado duas vezes para cantar na mesma residência,
vez que os padrões de sua linguagem não se conciliavam com as exigências
e com os conceitos de moral das famílias da várzea do Açu. A ele pouco
interessava se fosse acolhido até o final da função ou se fosse expulso
pelos donos da casa. Alguns varzeanos, porém, como Manoel Antônio da
Fonseca, faziam questão de reunir familiares e vizinhos que convidava
para um festival de poesia, estrelado por Cândio Cambão. Dava imensas
risadas e incentivava os assistentes a aplaudir o vate, o gênio, o poeta
e seus versos esplendorosos. Quem não concordasse que saísse.
Certa vez, no Guaxinim, uma praia perto de Logradouro e de Porto do
Mangue, era época de eleição e os candidatos contrataram o tabelião de
Pendências, Absalão Pinheiro Maia, para fazer, de uma só vez, 25
casamentos naquele lugarejo. Reuniram-se, no Grupo Escolar, os noivos,
os convidados, as testemunhas, os parentes e os curiosos, sob a
liderança de Joaquim Maria, um funcionário graduado da salina Matarazzo,
que mantinha considerável liderança no povoado. Presentes também os
candidatos, Dr. Limeira, a vereador, no município de Macau, e Dr.
Gerôncio Queiroz, a deputado estadual. Não se falava ainda em compra de
votos, corrupção eleitoral, nem coisa parecida. O pecado desses eventos
com finalidade de angariar sufrágios, se chamava "voto de cabresto" que
não era tão grave como querem mostrar os "puristas" de hoje. Não se
anulava eleição nem se cassava mandato. O negócio corria mais frouxo.
E os cinqüenta noivos reunidos, seus parentes e os habitantes da
comunidade se comprometiam a votar, e votavam mesmo, com os candidatos
que patrocinavam eventos dessa natureza.
Dentre os 25 pares de noivos ali reunidos, estava Manteiga, um cidadão
que na sua mocidade havia sofrido um castigo de "castração no cepo", por
questões de enxerimento com a filha dum fazendeiro, na Várzea do Açu.
Como não se perdoavam pecados dessa natureza, a pena imposta ao inditoso
Manteiga foi a mutilação de seus testículos no macete, uma cirurgia em
que se punham os ovos do condenado sobre um toro de madeira e, com
outro, se batia até inutilizar os órgãos reprodutores do infeliz. Assim
mesmo. Sem qualquer anestesia, Não há necessidades de se nomear os
verdugos de Manteiga, pois em qualquer esquina do universo varzeano se
conhece a história e se sabe quais foram os seus autores. É só assobiar.
No ato de celebração das bodas, tomando conhecimento de que dentre os
nubentes se encontrava Manteiga, o antológico Absalão chamou-o pelo
nome, mandou levantar-se e perguntou à noiva :
- Mulher, tu vais casar com Manteiga, mesmo sabendo que ele foi capado?
Não houve necessidade da resposta da noiva que, se foi dada, não foi
ouvida, em virtude da estrondosa gargalhada da platéia. Mesmo assim, não
deixou Manteiga de se casar. Só que, acabada a solenidade, por obra e
graça de Joaquim Maria, apareceu no recinto, com sua inseparável viola, o
poeta da região que não fazia falta em ajuntamentos comunitários. Para
abrilhantar a consumação das bodas, foram os presentes convidados a
tomar umas talagadas na bodega de Zé de Joaninha, ali na praia, para o
que não poderia faltar Cândio Cambão, o mais afamado repentista, o
cantador mais liberal, de improvisos mais coerentes com a linguagem dos
beradeiros, com os costumes e com os padrões de vida de toda a ribeira
do Açu, até as margens do Oceano Atlântico, ou para além se tivessem
como divulgar. Que não precisava de concorrente, de companheiro ou de
colega para fazer brilhar os seus versos, os seus temas, as suas rimas,
os seus galopes, tudo ao sabor da população que o assimilava, embora
fosse censurado nas casas de família, onde os costumes, os hábitos, a
moral não se conciliavam com a liberalidade irreverente do artista que
não se apresentava uma segunda vez, dada a prosaica e peculiar qualidade
de seu linguajar e de suas rimas.
Se Zé Limeira, descoberto por Orlando Tejo, lá na Paraíba, foi
considerado o Poeta do Absurdo, por tiradas dessa natureza, não era
favor nenhum nomear Cândio Cambão O ABSURDO DOS POETAS.
Naquele dia memorável, o tema era o casamento de Manteiga. Acomodaram
Cândio Cambão num canto do alpendre, abriram-se as garrafas e tome
versos. E tome cachaça. Sem companheiro que não lhe fazia falta, Seu
Cândio, trajado tipicamente: chapéu de palha de abas não muito pequenas,
calça de mescla azul bem surrada, camisa de peito aberto e paletó
igualmente meio envelhecido pelo uso e pela falta de sabão e de quaradô,
sem calçados nos pés, desde que não era comum esse uso nas areias da
praia, começou e seu vozeirão passou a ser ouvido além da costa, das
ondas e dos manguezais, mais ou menos assim:
Eu aqui me chamo Cândio,
Por Apelido Cambão,
Nascido no Logradô,
Manicípio de Alemão
Manteiga casou capado,
Só milagre de eleição.
Já vi milagre de santo,
De Padre Ciço Romão
Mas casá home capado
Na véspa de eleição,
Ou é astuça do demo
Ou coisa de Absalão.
Já vi a Mãe-de-Pantanha
Revirá o meu sertão,
Preto Ruívo de noite
Mascarar um barbatão.
Mas casá home capado,
Só milagre de São João.
Já vi coisa nesse mundo
De cortar meu coração,
Vi couro de lobisome,
Rasto de alma no chão.
Só não tinha visto ainda
Home casá sem cunhão.
Valei-me meu São Francisco
Ou Padre Ciço Romão.
Se me fartá um dos dois
Me serve Frei Damião.
Como vai tirá cabaço
Home qui não tem cunhão?
Ao noivo amigo Manteiga
Eu dou um conselho assim.
Em dia de casamento
Não se pensa em coisa ruim.
Se não tem mastro pra vela
Dê um cheiro no xinim.
Saudando os noivos, na hora da saída, Seu Cândio, em voz alta, disse:
Viva a noiva, viva o noivo
E o seu acumpanhamento,
Viva a boceta da noiva
De noite com o pau dento.
E prosseguia nesse diapasão. Não há necessidade de dizer que a platéia
se embriagava mais com os versos do poeta do que com a bebida
patrocinada pelos candidatos. Essas bodas foram mais comentadas, na
Várzea de Açu e na ribeira de Macau, do que aquelas outras de Caná de
que o vate também não se descuida e aborda através de referências ao
Novo Testamento.
Embora a sua fidelidade aos padrões de linguagem usados na região, hajam
sido mais para os ranchos das salinas, os cortes de palha, os terreiros
nas noites de festa de Santa Luzia, do que nos alpendres familiares,
Cândio Cambão não deixava de ser convidado para algumas casas de
família, cujos chefes aceitavam os padrões de linguagem exibidos, vez
que eram os mesmos do cotidiano e da vida dos varzeanos. O resto era
falsa moral. Seu Manoel Antônio da Fonseca, já nosso conhecido,
mantinha, afastado da casa onde morava com os familiares, um alpendre de
um armazém desocupado, que reservava para as apresentações de Cândio
Cambão, transformadas em verdadeiros festivais de rimas e de poesia que
embalavam as noites e quebrava a rotina da comunidade. Convidava os
amigos e quem quisesse assistir, levando ou não os seus familiares. E
quase morria de rir com os improvisos, com a maestria das rimas, com a
métrica impecável dos versos e especialmente com o padrão de linguagem
que não considerava falta de respeito, mas coerência, intimidade com um
vocabulário que a hipocrisia batizava de imoral. E nem por isso, Seu
Manoel Fonseca deixou de produzir uma das mais nobres e castas famílias
que ainda honra a sua procedência.
Os "fracos de espírito", os preconceituosos têm medo do tipo de
linguagem de Cândio Cambão, de Zé Limeira, de Moysés Sesyom ou Jorge
Amado e chamam de imoral. Por isso são desaconselhados a ler, não apenas
este, mas diversos e célebres tratados da literatura universal, como:
- Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, de Orlando Tejo;
- Eu conheci Sesyom, de Francisco Amorim;
- Os Capitães da Areia e quase toda a obra de Jorge Amado, ainda não
superado, no Brasil, que triunfou na mídia universal com a clarividência
de seus relatos, descrevendo, em linguagem nua e crua, as ações de seus
personagens;
- Michaut e sua História da Comédia Romana;
- William Falkner, Prêmio Nobel de Literatura que publicou Réquiem para
uma Prostituta, Santuário, Enquanto Agonizo e outros trabalhos que o
celebrizaram, mesmo considerados, pela fraqueza dos preconceituosos,
absurdos e até imorais para a sua época.
Existia, na época, em Porto do Mangue, um comerciante chamado João
Abreu, de origem paraibana. Entendia de tudo um pouco, vez que era dado à
leitura de tudo quanto fosse escrito que passasse por suas mãos. Há
colaboradores deste trabalho que afirmam haver Seu Cândio aprendido
alguns lances de história e de geografia, nas conversas mantidas com Seu
João Abreu, quando, sem ter o que fazer, sentava-se à calçada da bodega
e ficava ouvindo leituras e informações que Seu João divulgava com
prazer. Gostava dos versos de Seu Cândio e o acolhia em sua bodega para
cantar sem qualquer tipo de censura. E fiava seus produtos aos
conhecidos, inclusive a Cândio Cambão que, certa vez, sem ter esperança
de faturar qualquer trocado que lhe cortasse a corda do pescoço, apelou
para João Abreu, oferecendo-lhe versos como aval de uma cuia de farinha
que pagaria depois. Obtendo a concordância do comerciante, Cândio
Cambão, que já conduzia afinada a sua viola, mandou a seguinte glosa.
Este é Seu João Abreu
Home de ação e de paz,
Apaga fogo com gás,
Sabe onde Jesus se perdeu..
É como o errante judeu
Parente e mulher sem ter
Dá o cu não tem pra quê,
Empresta grana a ladrão
Vende farinha a Cambão
Pra nunca mais receber.
Numa certa noite, Seu Cândio apareceu em Lagoa de Bestas, acompanhado de
um filho, chamado Pascoal, já nosso conhecido, igualmente cantador, que
foi apresentado à platéia e, embora fossem pai e filho, não estariam
livres de se enfrentar em desafios de versos quentes, apimentados, em
que predominassem os ataques pessoais, a linguagem habitualmente
utilizada e o padrão de rimas livres, sem censura, e sem limites de
conceito, de moral ou de outras "machavelices", como dizia Engrácia de
Lula, lá no Alemão.
Depois de farto jantar, refogado com umas birinaites, acomodaram-se os
poetas no alpendre de um prédio onde, durante o dia funcionava a escola
local, e, sob o prestígio de numerosa e selecionada platéia, iniciarem o
debate à boca da noite que se prolongou até o quebrar da barra, em que
as gargalhadas e os aplausos ecoavam por entre as carnaubeiras e se
perdiam por onde o sabão não lava.
Comentando os disparates do evento, alguns dos assistentes, no dia seguinte, repetiam, nas bodegas e nas estradas, versos assim:
Me chamo Cândio Cambão
Nágua doce e na maré,
Negro da barba de bode,
Pescoço de Jacaré,
Vou passar na tua casa
Vou comer tua mulé.
Respondendo, no mesmo diapasão, o filho cantou:
Deixe de cantar lorota
Que comigo ninguém pode,
Pescoço de jacaré,
Véio da barba de bode,
Vou cortar os teus cunhão,
Cuma é que você fode?
Cândio Cambão, de todos os naturais da Várzea do Açu, foi o que mais se
identificou com os costumes, com as paisagens, com a linguagem dos
beradeiros, vez que não conheceu outros horizontes. Nunca foi além das
cidades de Açu e de Macau, os limites geográficos da várzea que
percorria a pé, sem necessidade de outras referências a não ser a sua
viola e a sua fama de cantador.
E, se gabando, glosava o seguinte mote:
Minha casa é meu chapéu,
Meu currico é a viola.
Fui falá cum a secretára
No tempo do impaludismo,
Sem entendê dos modismo,
Pra me impregá na malára.
A mulé de dura cara
Me pediu meio gabola:
- Documento, meu pachola?
Respondi no meu cordel:
- Minha casa é meu chapéu
Meu currico é a viola
E, quando era convidado a uma apresentação, sempre aceitava sem se fazer
de rogado, consciente de seu talento e de seu poder de versejador, de
glosador dos mais variados temas, enfim auto-suficiente como cantador e
dono de uma linguagem, por alguns considerada imprópria, censurada, por
outros, porém, digna de aplausos e de repetidos comentários nos diversos
ajuntamentos comunitários e que hoje, apesar da censura da época,
ilustram comentários e narrativas dos mais variados e ilustres autores.
Nos assistentes, havia sempre alguns que davam motes para ser glosados. E
não faltava, dentre esses, uns mais inconvenientes que provocavam a
irreverência do poeta, só pra ver a confusão. Seu Cândio tinha como lema
não deixar pergunta sem resposta e mote sem glosar. Achava que o mote
era um desafio a sua capacidade. Mais aguçado do que os outros,
brincalhão e debochado, Parrudo, lá em Porto do Mangue, um dos
assistentes, escolhia motes para provocar a censura, a confusão e o
entusiasmo da maioria. Numa certa noite, deu ao cantador o seguinte
mote:
O dono da casa é corno
E a dona foi feme minha.
Cândio Cambão que não deixava mote sem resposta, disparou:
Discurpe o dono da festa
Mas o mote eu vou rimá
Eu conheço o meu lugá
E sei inté quem não presta
Marco no couro da testa
Pra mostrá que a posse eu tinha
Ando uma légua todinha
Pra comê mulé no torno.
O dono da casa é corno
E a dona foi feme minha.
Outras vezes, era solicitado para louvar as moças da platéia e os versos pulavam como pipoca no tacho.
Morena dos ói azul
Dos beiço munto incarnado
Vou fazê o meu reinado.
Lá na cidade do Açu.
Vou comê o teu angu
Nem que precise casá
Mesmo assim eu vou botá
Teu retrato num espeio,
Vou fazê dos teus penteio
Uma corda de laçá.
Tinha, raras vezes, crises de decoro e fazia versos assim:
Na ponta daquele sítio
Tem quatro classe de gente
Qui só anda de magote:
Batata com Catapirra,
Cambão, Pandoca e Timote.
Duravam pouco essas crises.
Na praia de Pedra Grande, perto do Rosado, atual município de Porto do
Mangue, cantava na casa de Antônio Carreiro, quando uma lagartixa caiu
do teto no meio da sala e, apavorada com o burburinho que criou, correu
subiu pelas pernas de uma moça que fez uma zoada medonha, pulando e
gritando, sem se livrar da lagartixa que, quanto mais fechava mais
prendia a bicha entre as pernas. Seu Cândio aproveitou o momento e o
motivo e fez uns versos que terminavam assim:
A Lagatixa caiu
E levantou-se depressa,
Subiu nas pernas da moça.
Quanto mais ela pulava
Mais se escondia na brecha.
Os parentes e amigos da moça ficaram ressentidos e não aceitaram a
referência. CândioO Cambão quis correr, mas era tarde. Acabou apanhando,
dessa vez.
Cantando, doutra feita, na casa de um novato chamado Antero, recém
chegado na Várzea e pouco conhecedor das pessoas, dos hábitos e da
conduta de Cândio Cambão, aceitou a proposta de uma cantoria, para o que
convidou os vizinhos e a comunidade. Lá para as tantas, já meio
"chulado", Cândio Cambão começou a cantar loas aos presentes e se saiu
com esta:
No dia qui eu amanheço
Cum três quente e dois queimando,
Cum o cabelo fumaçando,
Os amigo eu discunheço.
Pego do fim pro começo
Desprezo o qui Deus mi deu
Esqueço inté quem sou eu,
Mas vou lhe falá sincero:
Eu como o cu de Antero
E Antero num come o meu.
Foi suficiente para ser decretado o encerramento da cantoria e a expulsão do cantador.
Outra noite, não ficou bem esclarecido se na casa de Manoel Fonseca
(hein, Tibúrcio? foi lá?), Cândio Cambão, desinibido, cantava assim:
Eu cantei no Juazeiro
Do Pade Ciço Romão
Me pagaro cum feijão,
Mas cantei um mês inteiro.
Me atraquei cum violeiro
Do cariri, do sertão,
Cantei martelo e quadrão
Cum um tá de Zé Limeiro
Deixei prenha num puteiro
A mulé de Lampião.
Inda sou bom nesse prato,
Me censure quem quisé,
Pra comê uma mulé
Corro, brigo, morro e mato
Topo quarqué desacato,
Enfrento inté bataião.
Eu faço qui nem Adão
Como Eva, a maçã, e a cobra.
Sou pau para toda obra
E tenho munta tesão.
Não se escusava de fazer seus versos sobre qualquer tema e se gabava de
haver aprendido história, especialmente a sagrada. Vibrava quando lhe
pediam para glosar motes do Novo Testamento, sobre o que discorria com
relativa sabedoria adquirida em palestras com Seu João Abreu, um
comerciante ali instalado, sem familiares, que lia muito e fazia questão
de dividir com o poeta a cultura adquirida. E são a Cândio Cambão
atribuídas, por colaboradores de fé, as seguintes produções:
Para ele, Jesus Cristo e os seus pares que citava eram seres humanos
como ele, como os demais que conhecia. Usava sua irreverência sem
problemas com heresia, com blasfêmia, com sacrilégio, que não constavam
de seu vocabulário. E os personagens da história religiosa se
apresentavam mais humanizados, sem a auréola de divindade, que ele
exibia assim:
Jesus quando veio ao mundo
Foi na Barca de Noé,
Se casou cum Salomé,
Sobrinha de São Raimundo.
Correu o mundo e o fundo
Amuntado num jumento.
Fez um grande movimento,
Tocando uma concertina.
Se arranchou na Palestrina
Diz o Novo Testamento.
Não tendo mais qui fazê
Jesus foi pra Galiléia,
Armuçando na Judéia
Comeu siri cum dendê,
Depois passou a dizê
Suas missa em pé quebrado
Batizô improvisado
São João e Santo Expedito
Assim é que tá escrito
No testamento sagrado.
São José desconfiado
Da gravidez de Maria,
Mandô fazê na Bahia
Exame balanceado.
Não gostou do risultado
Que apareceu no momento
E já menos ciumento
Disse: deixa isso pra lá.
Assumiu sem recramá,
Diz o Novo Testamento
De barro Adão foi formado
E Eva duma costela,
Ele deitado mais ela
Fez o primeiro pecado.
E quando tava escanchado
Qui parecia um jumento,
Cum o pauzão todo dento,
Lembrou-se qui tava nu.
Deu-lhe uma câimbra no cu
Diz o Novo Testamento.
Se a história é verdadeira
E não me falha a memóra,
Adão não contou históra
Passou Eva na madeira
Numa grande bebedeira,
Sem esperá casamento
Tarado qui nem jumento,
Comeu maçã, cobra e tudo.
Quem duvidar fica mudo,
Diz o novo testamento.
Jesus curava ferida
De toda espécie da terra.
Desde a febre berra-berra
A espinhela caída
Ressuscitou e deu vida
A branco, preto e amarelo.
Curou até um sunguelo
Qui tinha mal de travage,
Só não curou a fogage
Qui deu no cu do guachelo.
Tinha também seus rasgos de patriotismo, de amor à terra. Não aceitava
que ninguém destratasse as pessoas nem a localidade onde morava. O
vigário de Açu, Mons. Júlio Alves Bezerra, se indignou, certa vez, com a
negativa dos pescadores locais em contribuir com recursos para
recuperação do telhado da capela. Os pescadores alegavam que todo o
dinheiro arrecadado em Porto do Mangue, era levado para o Açu. O
vigário, ameaçando, disse que o dinheiro dos pescadores, utilizado em
bebedeira, jogo e prostituição, em vez de recuperar o telhado da capela,
iria servir aos moradores para a compra de medicamento e luto para seus
familiares, numa autêntica ameaça de tragédia e de praga rogada para
cair sobre a localidade.. Realmente, em seguida a essa premonição,
ocorreu a epidemia do impaludismo que matou a maioria dos habitantes do
vilarejo..
Cândio Cambão, inconformado e sem outra forma de resistência, divulgou, numa cantoria, os seguintes versos:
Padre Júlio do Açu,
Se veste cumo urubu,
Pra benzer e excomungar
Anda com um ajudante,
De andar mei rebolante,
Seu fresco particular.
São poucos os varzeanos ainda existentes, admiradores da velocidade, da
segurança e da espontaneidade das glosas de Cândio Cambão, aliadas a uma
criatividade somente nos gênios identificada. Se fosse vivo ainda,
poderíamos, com muita justiça, batizá-lo de Sabiá das Carnaubeiras
Não se enfadava. Estava sempre inspirado e, a troco de uma bicada de
cana, em qualquer bodega, atendendo aos pedidos dos amigos mais curiosos
e desafiadores de seu talento, rimava de improviso loas, críticas ou
elogios. Tanto fazia louvar as qualidades quanto descrever os defeitos.
Seguem algumas localizadas na memória dos admiradores, sem origem ou
identificação:
Foi poucas vezes à cidade de Macau. Numa delas, lhe mostraram um rapaz
alegre, desses que hoje chamam boiola, e Seu Cândio, sem gaguejar,
emendou:
Os frescos de hoje em dia
Têm mania de Polu(*)
De coçar a própria tripa
Quando a coceira é no cu.
(*) Polu era um veado velho, seu conhecido.
E não lhe faltava inspiração. Estava pronto e fazia, de improviso, com
ou sem censura, versos críticos ou elogiosos. Suas loas saíam bem
rimadas, rigorosamente metrificadas, sem obediência a métodos, estilos,
ética ou moral. As rimas lhe saltavam da mente, sobre qualquer assunto,
sem obrigação de escolher outro linguajar que não fosse o seu habitual.
Vejo mocinhas bacana
Procurá lugá escuro
Com os noivo em toda festa
Agarrada no pau duro,
Diz arriando a calcinha:
- Bote essa porra todinha,
Encoste testa com testa.
Pressas mocinhas vadias
Que andam de corpo nu
Eu queria ter a pomba
Do tamanho de um muçu,
Pra empurrá na buceta
E sair atrás do cu.
Indo de Açu pra Macau
E de Macau para o Açu,
Eu tanto como buceta
Cumo também como cu.
Já diz um ditado nobre.
Toda roupa serve um nu.
Não, mas você de colete
E de gravata não cobre
A cabeça do cacete
Nem a regada do cu.
Eu gosto munto de vinho
Mas só me dão aguardente
Mesmo assim desce macia
Cumo pica em cu de gente.
Eu já fui e já vortei
E agora não vorto mais
Qui eu num sou coro de pica
Pra tá pra frente e pra trás.
Glosas
Já tive pica afiada
Mais dura do que macete,
Às vezes era um cacete
De quebrar castanha assada
Hoje não vale mais nada
Não há força que descole,
Se a boceta for um fole,
Eu empurro com o dedo.
Já fodi de fazer medo
Hoje tô de pica mole.
Já fudi uma tabaca
Cum mei palmo de pinguelo
Fiquei azul, amarelo,
Cum a catinga de suvaca.
Fazendo vez de macaca
Me encosntei num pé de muro.
Era uma noite de escuro.
Chegou uma mulé preta,
Fudi cu, fudi boceta
Inda saí de pau duro.
(*) Agradecendo a valiosíssima colaboração de Álvaro Fernandes Freire,
Nelson Borges, José Lopes, Francisco Almeida, Tibúrcio Fonseca, o autor
reconhece que não seria possível o resgate e o registro das facetas
poéticas de Cândio Cambão, sem o incentivo e sem as informações aqui
catalogadas.
CULTURA REGIONAL
CÂNDIO CAMBÃO
Resgate de Valores Culturais
GILBERTO FREIRE DE MELO
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Postado por Falando de Saberes
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