Meu caro leitor assuense: Na minha observação, acho que o importante (me ufano em chamá-lo assim) mucípio do Assu, de antigas glórias, de tantas tradições, conhecida até internacionalmente, merece um brazão melhor graficamente trabalhado, que represente não somente a carnaubeira (economia principal há quase trinta anos atrás daquela região varzeana) e o marco da virada do século 1900, bem como a nossa economia atual, a cultura, os casarões centenários. Faço essa sugestão ao poder legislativo e executivo do município do Assu. Fica o registro.
Um comentário:
Dona Gena – Porque nem todos morrem
Tinha 12 ou 13 anos de idade e minha família foi morar na calorenta Assu. Nossa casa ficava ali na praça central da cidade, a Getúlio Vargas. A vida social da cidade girava em torno desta praça. O programa noturno tanto de jovens quanto de idosos era passear pela praça. Pois bem, em um sóbrio casarão de paredes azuladas vivia dona Gena – diminutivo carinhoso para um nome pomposo: Maria Eugênia Maceira Montenegro. Era casada com doutor Nelson Borges Montenegro, um agrônomo formado em Lavras, cidade mineira onde iria conhecer Maria Eugênia. Um sujeito igualmente formidável: parcimonioso, ensimesmado, leal e amigo. Não sei se foi no verão de 1971 ou de 1972 que com a mudança de Macau para Assu vim a conhecer “estes Montenegros”. Mas sei, com enorme certeza, que ter conhecido dona Gena, ainda adentrando na adolescência, foi provavelmente a força mais importante a impulsionar meus anos vida afora. É que ela era uma poeta, com diversos livros publicados. Uma intelectual enclausurada na província e mais ainda, em uma diminuta cidade de um dos estados brasileiros mais pobres do país. Era além de poeta, cronista, pintora. Sendo seu marido de tradicional família de líderes políticos da região não haveríamos de nos admirar que dona Gena também respirasse política. E assim foi prefeita da ainda menor cidade de Ipanguassu. Ela gostava de música clássica, de ópera. Seu apreço pela arte dramática era tal que chegou a escrever algumas peças e, como autoridade municipal, criou e depois ampliou um incipiente Teatro Sandoval Wanderley. Certo dia, vendo que já era chegado à literatura, dona Gena me convidou para organizar sua biblioteca particular. O trabalho consistia em catalogar todos os nomes dos livros com seus respectivos autores e depois etiquetá-los. Foram quase três meses de trabalho vespertino: pela manhã estudava no Colégio Nossa Senhora das Vitórias e à tarde me enfurnava com livros na casa da dona Gena. Não era raro que tinha como fundo musical algumas óperas de Verdi, como La Traviatta. Os livros passaram a me ser familiares. Conheci Victor Hugo e Alexandre Dumas, Julio Verne e Leon Tolstoi, Charles Dickens e Mark Twain. Hoje, reparo que não me lembro de quase nenhum autor brasileiro freqüentando a biblioteca da dona Gena. Algumas vezes, naquele momento em que a tarde se vai e a noite principia, ficava muito feliz com dona Gena lendo para mim trechos de um novo livro ou versos de uma poesia ainda inconclusa. Ela criava e depois queria receber algum sinal de aprovação. E caminhava pela casa, uma casa grande, com um viveiro de pássaros, sempre acompanhada de seu cachorro Dayán. Uma dia me disse que o nome Dayán havia sido dado pela semelhança do cachorro com o famoso general israelense Moshe Dayán: o general tinha uma tapa-olho negro e o cachorro tinha um dos olhos circundado de preto, uma espécie de sinal de nascença. Naqueles anos – é possível que ainda hoje seja assim – era muito comum as pessoas colocarem cadeiras na calçada para receber as visitas. Certamente que uma das rodas de conversas mais animadas de Assu era a calçada destes Montenegros. Os temas variavam muito, de política internacional a nacional e desta a estadual e local, depois tínhamos sempre pessoas recitando frases, fragmentos de poesias deste ou daquele autor. As cadeiras, dobráveis, ficavam empilhadas no primeiro ambiente, geralmente a sala de estar. Anoitecia e o programa da noite era ficar jogando conversa fora naquela calçada e observar as pessoas chegando, passeando e saindo a Praça Getúlio Vargas. Dona Gena era bem conhecida por seu temperamento aéreo, desligado vamos dizer. E suas histórias já habitavam o folclore da cidade interiorana. Uma delas dava conta de haver comprado dois pares de sapato idênticos: havia esquecido que já adquirira um par na mesma semana. Outra mostrava sua estranheza por, ao lavar as mãos no lavabo, o sabonete não fazia surgir espuma. É que esfregara, distraidamente, as mãos com... a tampa da pia. Em uma noite maldizia esta ou aquela atriz da telenovela, considerando-a péssima artista e já na noite seguinte não economizava em rasgados elogios pela maestria da mesmíssima atriz. Sua resposta: “As pessoas podem mudar e eu mudei de opinião”. Os muitos quadros a óleo por ela pintados também chamava a atenção do incauto observador. Num deles a figura eloqüente de um anjo negro. Uma espécie de Saci-Pererê alado. Noutro, umas borboletas com uma espécie de pequenos chifres nas asas, obviamente, um erro de cálculo cometido enquanto pintava. Tinha imensa admiração pelo poeta João Lins Caldas, um assuense cinco estrelas. Lembro de um dia ter ouvido comentar, a respeito de Clarice Lispector: “Não gosto dessa escritora, com tantos assuntos para escrever um romance ela resolve colocar um personagem comendo uma barata?! As pessoas falam que esta Clarice é muito culta, mas essa eu não engulo não!” Mas sabia que nos anos à frente iria ter tanta intimidade com o texto de Clarice. Até meu mestrado na Universidade de Brasília seria sobre seu último livro transposto para o cinema, A Hora da Estrela. Conversávamos muito. Se existiu alguém por quem sempre dediquei profunda admiração esta pessoa foi dona Gena. Hoje, com uma dezena e meia de livros publicados, após ter viajado por quatro dezenas e meia de países, de ser membro de diversas instituições culturais, academias etc, vira e mexe me pego pensando nos dias de dona Gena, nas conversas varando a noite em sua acolhedora calçada, nos sons de Verdi pontuando a solidão assuense. Quando do lançamento de meus primeiros livros em Natal, dona Gena veio me abraçar. Era sempre a mesma senhora de rosto sorridente e alma de criança prestes a aprontar alguma. Há alguns anos minha mãe me telefonou para dizer que Gena havia morrido. Já morava em Brasília. Nem que quisesse conseguiria chegar a tempo de me despedir. Como diria Clarice, não fui ao enterro porque nem todos morrem.
Termino este breve texto com a singeleza da poesia de dona Gena:
FLOR DO AMOR
Quero te ofertar a flor
Dos beijos que plantei em tua boca.
Tem o perfume suave do amor
E a ternura de almas se encontrando.
Quando vires a flor entreaberta,
Lembra - te, querido amor,
Das lágrimas que a regaram.
E sentirás, quando beijá - la,
Um amargo sabor de sal
Que as pétalas trêmulas captaram.
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