Leonardo Sodré*
A lembrança mais antiga que tenho do meu pai era quando ele vinha do trabalho. Vestia-se quase sempre com ternos de linho branco que depois do expediente ficava elegantemente amassado. Ele trabalhava no Grande Ponto, também conhecido por Cidade Alta, naquele tempo, em Natal. Era gerente de uma loja de tecidos, “As Nações Unidas” e tinha orgulho de trabalhar naquele lugar atendendo, como ele dizia, “a fina flor da cidade”.
Não tinha carro e vinha caminhando até a rua Manoel Dantas, em Petrópolis, onde morávamos. Depois, em 1974, colocou seu próprio negócio, o Sodré Armarinho, na rua Coronel Cascudo, em homenagem ao sobrenome de minha mãe. Chamava-se José de Siqueira Leite, apenas Siqueira para os amigos e faleceu em 1986.
Depois, quando cresci mais um pouco, comecei a conhecer mais o Grande Ponto. Estudava no Colégio Marista e meu pai finalmente havia conseguido comprar um carro. Na verdade, um verdadeiro automóvel, inglês – Anglia -, fabricado em 1948. Era preto e parecido com o que usado pelos “Irmãos Metralha”, das revistas da Disney. Ele ia me buscar no colégio e, impreterivelmente, passava na Confeitaria Cisne para uma cervejinha com o dono do estabelecimento, seu compadre e amigo, Múcio Miranda.
A Confeitaria Cisne ficava na Rua João Pessoa e tinha um reservado que servia de bar para a maioria dos boêmios daquele tempo. Lá encontrava outros amigos: Jurandir Pontes, gerente da loja “Quatro e Quatrocentos”, Lobrás, que ganhou esse nome depois de uma promoção de vendas, Leão, que consertava máquinas de escrever e calcular e que era exímio jogador de sinuca, Eudo Leite, professor José Melquíades, o músico e comerciante Gumercindo Saraiva, Mário Lima, Tota Zeroncio, Chiquinho da mercearia da rua Coronel Cascudo e Edson Perez, entre outros.
O garçom era José Américo, que também fazia parte do grupo e era tão popular que chegou a se candidatar a vereador. Tinha sempre resposta para tudo, menos para o fato de algumas aranhas conseguirem montar teias tão rápidas nas garrafas consumidas que eram encostadas nos cantos de parede para feitura da conta nos finais de farra. Vez por outra descia para Ribeira e encontrava outro grupo, capitaneado por Luiz Tavares de Souza, José Alexandre Garcia e Luis da Câmara Cascudo.
Quanto a mim, fazia pequenas incursões no reservado, mas passava a maior parte do tempo sentado na calçada da confeitaria vendo o movimento e me deliciando com a enorme variedade de chocolates que o meu padrinho vendia. Para os outros, pois para mim ele fornecia de graça...
Depois fomos morar na região do Grande Ponto, na rua General Osório.
O passeio de domingo, depois da praia, terminava sempre na lanchonete ki-Show, na rua João Pessoa, onde a juventude se reunia num ambiente comercialmente futurista. Tudo era novo e até a conta se pagava através de boletos individuais na saída da lanchonete. Os filhos de pais ricos ficavam circulando em modernos Aero-Willys de um lado para o outro. Ninguém tinha carteira de motorista e o Jeep do Detran, pilotado por um militar que tinha um bigode imenso tinha muito trabalho perseguindo esse pessoal.
À noite passeávamos pelas calçadas da avenida Rio Branco e João Pessoa vendo as vitrines. Papai mostrava todo orgulhoso a que ele montava. Outras como as da Casa Duas Américas e Casa Rio chamavam a atenção da sociedade. Tudo era limpo e ordeiro e não havia assaltos. Tinha até lugar para estacionar onde quiséssemos.
O Grande Ponto tinha grupos. Tinha a turma do Café São Luiz, pessoal diurno. Tinha os especialistas em política que se reuniam nas madrugadas na esquina da João Pessoa com a Princesa Isabel. Tinha a turma do escondidinho e a turma dos finais de farra da lanchonete Dia e Noite, palco de memoráveis brigas e acordos políticos.
Existiam personagens incríveis. “Alberis”, por exemplo, vendedor de jornais, referia-se ao Diário de Natal como “Diaris” e fabricava suas próprias manchetes. Uma vez o peguei gritando:
- Extra! Vejam a notícia da mulher que engoliu um papagaio e arrotou um peru.
Tinha o pintor Grilo, responsável por, praticamente, cem por cento das fachadas de lojas do Grande ponto, sempre de branco, sempre de bom humor, cantando ou assobiando com um imenso chapéu. Parecia um mexicano. Tinha Milton Siqueira, incrível poeta que morava em um barraco na beira da praia onde hoje é o início da Via Costeira e sobrevivia vendendo poesias no Grande Ponto.
O Grande Ponto foi palco da maior festa popular que já aconteceu em Natal. A comemoração do tricampeonato de futebol, em 1970. Naquele tempo ninguém descia para praia. O Grande Ponto era o orgulho dos natalenses e tudo convergia para lá.
Depois, em nome do progresso e consequente favorecimento dos shoppings, ruas foram fechadas, fachadas antigas foram derrubadas e muito da história foi se perdendo. Mas o Grande Ponto continua palco de grandes manifestações culturais e políticas e o Café São Luiz, por exemplo, continua a ser um excelente instituto informal de pesquisa sobre qualquer assunto.
O Grande Ponto, que já foi moderno, hoje tem História. E, melhor do que grande, diante do crescimento da cidade, virou um ponto que foi grande fisicamente e se tornou maior ainda pela memória que guarda e preserva.
*Jornalista e escritor
Do livro/Antologia “Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão, página 109”, Dezembro 2002.
A lembrança mais antiga que tenho do meu pai era quando ele vinha do trabalho. Vestia-se quase sempre com ternos de linho branco que depois do expediente ficava elegantemente amassado. Ele trabalhava no Grande Ponto, também conhecido por Cidade Alta, naquele tempo, em Natal. Era gerente de uma loja de tecidos, “As Nações Unidas” e tinha orgulho de trabalhar naquele lugar atendendo, como ele dizia, “a fina flor da cidade”.
Não tinha carro e vinha caminhando até a rua Manoel Dantas, em Petrópolis, onde morávamos. Depois, em 1974, colocou seu próprio negócio, o Sodré Armarinho, na rua Coronel Cascudo, em homenagem ao sobrenome de minha mãe. Chamava-se José de Siqueira Leite, apenas Siqueira para os amigos e faleceu em 1986.
Depois, quando cresci mais um pouco, comecei a conhecer mais o Grande Ponto. Estudava no Colégio Marista e meu pai finalmente havia conseguido comprar um carro. Na verdade, um verdadeiro automóvel, inglês – Anglia -, fabricado em 1948. Era preto e parecido com o que usado pelos “Irmãos Metralha”, das revistas da Disney. Ele ia me buscar no colégio e, impreterivelmente, passava na Confeitaria Cisne para uma cervejinha com o dono do estabelecimento, seu compadre e amigo, Múcio Miranda.
A Confeitaria Cisne ficava na Rua João Pessoa e tinha um reservado que servia de bar para a maioria dos boêmios daquele tempo. Lá encontrava outros amigos: Jurandir Pontes, gerente da loja “Quatro e Quatrocentos”, Lobrás, que ganhou esse nome depois de uma promoção de vendas, Leão, que consertava máquinas de escrever e calcular e que era exímio jogador de sinuca, Eudo Leite, professor José Melquíades, o músico e comerciante Gumercindo Saraiva, Mário Lima, Tota Zeroncio, Chiquinho da mercearia da rua Coronel Cascudo e Edson Perez, entre outros.
O garçom era José Américo, que também fazia parte do grupo e era tão popular que chegou a se candidatar a vereador. Tinha sempre resposta para tudo, menos para o fato de algumas aranhas conseguirem montar teias tão rápidas nas garrafas consumidas que eram encostadas nos cantos de parede para feitura da conta nos finais de farra. Vez por outra descia para Ribeira e encontrava outro grupo, capitaneado por Luiz Tavares de Souza, José Alexandre Garcia e Luis da Câmara Cascudo.
Quanto a mim, fazia pequenas incursões no reservado, mas passava a maior parte do tempo sentado na calçada da confeitaria vendo o movimento e me deliciando com a enorme variedade de chocolates que o meu padrinho vendia. Para os outros, pois para mim ele fornecia de graça...
Depois fomos morar na região do Grande Ponto, na rua General Osório.
O passeio de domingo, depois da praia, terminava sempre na lanchonete ki-Show, na rua João Pessoa, onde a juventude se reunia num ambiente comercialmente futurista. Tudo era novo e até a conta se pagava através de boletos individuais na saída da lanchonete. Os filhos de pais ricos ficavam circulando em modernos Aero-Willys de um lado para o outro. Ninguém tinha carteira de motorista e o Jeep do Detran, pilotado por um militar que tinha um bigode imenso tinha muito trabalho perseguindo esse pessoal.
À noite passeávamos pelas calçadas da avenida Rio Branco e João Pessoa vendo as vitrines. Papai mostrava todo orgulhoso a que ele montava. Outras como as da Casa Duas Américas e Casa Rio chamavam a atenção da sociedade. Tudo era limpo e ordeiro e não havia assaltos. Tinha até lugar para estacionar onde quiséssemos.
O Grande Ponto tinha grupos. Tinha a turma do Café São Luiz, pessoal diurno. Tinha os especialistas em política que se reuniam nas madrugadas na esquina da João Pessoa com a Princesa Isabel. Tinha a turma do escondidinho e a turma dos finais de farra da lanchonete Dia e Noite, palco de memoráveis brigas e acordos políticos.
Existiam personagens incríveis. “Alberis”, por exemplo, vendedor de jornais, referia-se ao Diário de Natal como “Diaris” e fabricava suas próprias manchetes. Uma vez o peguei gritando:
- Extra! Vejam a notícia da mulher que engoliu um papagaio e arrotou um peru.
Tinha o pintor Grilo, responsável por, praticamente, cem por cento das fachadas de lojas do Grande ponto, sempre de branco, sempre de bom humor, cantando ou assobiando com um imenso chapéu. Parecia um mexicano. Tinha Milton Siqueira, incrível poeta que morava em um barraco na beira da praia onde hoje é o início da Via Costeira e sobrevivia vendendo poesias no Grande Ponto.
O Grande Ponto foi palco da maior festa popular que já aconteceu em Natal. A comemoração do tricampeonato de futebol, em 1970. Naquele tempo ninguém descia para praia. O Grande Ponto era o orgulho dos natalenses e tudo convergia para lá.
Depois, em nome do progresso e consequente favorecimento dos shoppings, ruas foram fechadas, fachadas antigas foram derrubadas e muito da história foi se perdendo. Mas o Grande Ponto continua palco de grandes manifestações culturais e políticas e o Café São Luiz, por exemplo, continua a ser um excelente instituto informal de pesquisa sobre qualquer assunto.
O Grande Ponto, que já foi moderno, hoje tem História. E, melhor do que grande, diante do crescimento da cidade, virou um ponto que foi grande fisicamente e se tornou maior ainda pela memória que guarda e preserva.
*Jornalista e escritor
Do livro/Antologia “Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão, página 109”, Dezembro 2002.
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