domingo, 4 de abril de 2021

Sonata e destruições

Depois de muito, depois de vagas léguas,
Confuso de domínios, incerto de territórios,
acompanhado de pobres esperanças
e companhias infiéis e desconfiados sonhos,
Amo o quão tenaz ainda sobrevive nos meus olhos,
ouço no meu coração meus passos de cavaleiro,
mordo o fogo adormecido e o sal arruinado,
e de noite, de atmosfera escura e luto foragido,
Aquele que vela à beira dos acampamentos,
o viajante armado de resistências estéreis,
preso entre sombras que crescem e asas que tremem,
Eu me sinto ser e meu braço de pedra se defende.
Há entre ciências de choro um altar confuso,
e na minha sessão de pôr do sol sem perfume,
nos meus dormitórios abandonados onde a lua habita,
e aranhas da minha propriedade, e destruições que me são queridas,
Eu adoro meu próprio ser perdido, minha substância imperfeita,
meu golpe de prata e minha perda eterna.
Ardeu a uva molhadinha e sua água fúnebre
Ainda vacila, ainda reside,
e o património estéril e o domicílio traidor.
Quem fez cerimônia de cinzas?
Quem amou o perdido, quem protegeu a última coisa?
O osso do pai, a madeira do navio morto,
e seu próprio fim, sua mesma fuga,
Sua força triste, seu deus miserável?
Espreita, pois, o inanimado e o enlutado,
e o testemunho estranho que eu segurei,
com eficiência cruel e escrito em cinzas,
é a forma de esquecer que eu prefiro,
o nome que dou à terra, o valor dos meus sonhos,
A quantidade infindável que eu divido
com meus olhos de inverno, durando cada dia desse mundo.

Pablo Neruda



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