O SINAL
Ivan Pinheiro
A velha Raquel estava sentada na calçada proseando com umas amigas da rua em que morava, quando avistou ao longe a silhueta cambaleante de seu filho Rafael. Vinha bêbado. E, quando isto acontecia, acabava a tranqüilidade dela e dos moradores circunvizinhos.
Imediatamente ela despediu-se das amigas e entrou em casa deixando a porta apenas encostada, como sempre, para não ser incomodada e para que seu filho não se aborrecesse quando fosse adentrar, quase sempre, às altas horas da madrugada.
Por trás daquela mulher alta, já corcunda pelo sofrimento da vida, se escondia a angústia e o sofrimento. Perdeu o esposo ainda jovem. Seu único filho que poderia ser a sua esperança, só lhe dava desgostos. Sem o comando paterno virou um viciado em diversos tipos de drogas, sobretudo, o álcool e a maconha.
Rafael foi se aproximando. Parou na frente da casa, botou a mão na parede, olhou para os vizinhos e gritou:
- Aquela égua ainda tá aí, ou já foi fingir que tá dormindo?
Não recebendo respostas completou:
- Vão todos pra puta que pariu que eu não tenho satisfação a dar a ninguém. Bebo com meu dinheiro... E pronto!
O círculo de amigas foi se desfazendo rapidamente, cada uma se recolhendo às suas casas para não ter que ouvir mais desaforos. A porta se abriu com a velocidade de um raio, quando Rafael a empurrou violentamente. A velha Raquel quase pulou da surrada rede armada num canto da sala, já que a casa só possuía um quarto e este ela sempre destinava para ele no intuito de agradá-lo e evitar reclamações.
- O que é isso, meu filho, tá ficando maluco?
- Maluco é você velha gagá. Eu quero é comer... E muito!
Ela fingiu que não tinha ouvido aquele atrevimento. Foi para a cozinha e começou a preparar a refeição do filho. Botou os pratos sobre a mesa e retornou para comunicar que o jantar estava servido. Com muito jeito entrou no quarto e pôde observar que o estado de embriaguez de Rafael não tinha permitido que ele tirasse a roupa completamente. A calça tinha enganchado na altura dos tornozelos. Dormia todo desajeitado sobre a cama.
Raquel puxou suas pernas para cima da cama e, com dificuldades, conseguiu retirar-lhe a calça. Com movimentos rápidos, apanhou um lençol no fundo do baú, abriu-o e o jogou sobre aquele corpo fétido. Foi como derramar sobre ele um frasco de perfume de flor do mato colhido ao nascer da aurora.
Retornou à cozinha, cobriu toda a comida, apagou as luzes e, com cuidado para não acordá-lo, voltou à rede para enfim repousar o sono dos justos.
- Maaaeeê!... Cadê meu comer?!
A velha Raquel despertou sobressaltada de seu breve sono. Quase bota o “coração pela boca”, como diz o dito popular. Rapidamente saltou da rede, acendeu a luz e, ainda trêmula, falou baixinho e compassado:
- Meu filho, você quer me matar do coração? Pra que esses gritos? Pra que esse escândalo? Tenha modos, será que você vai passar a vida toda me dando trabalho?
Rafael ainda transtornado das drogas replicou:
- Agora sim... Eu não poder gritar na minha casa porque uma “merda” dessa não quer. Sai de mim velha... Eu não casei para não ter que dar satisfação à mulher nenhuma. Grito, grito: Cadê meu comeeeerrrr!?
Ao tempo em que Rafael foi gritando, num movimento instantâneo, apanhou um calçado e jogou em direção à mãe que se encontrava na porta do quarto. A velha tentou se esquivar, porém, a sandália bateu em seu rosto com bastante velocidade, raspando sua pele como se fosse uma navalha. Raquel levou a mão direita ao rosto e pôde observar o sangue que escorria no seu braço.
- Veja, meu filho, o que você fez comigo! Quem faz isso com uma mãe merece ser castigado.
Raquel foi até o baú, pegou um pacote de lã de algodão e colocou sobre o corte na tentativa de estancar o sangue. Decorridos alguns minutos ela olhou para o filho e falou carinhosamente.
- Venha, meu filho... Seu jantar está na mesa.
No dia seguinte, quando a claridade alaranjada que lentamente iluminava o céu começou a surgir, Raquel já estava de pé varrendo o terreiro da casa. A vizinha, por nome de Nazaré, que também tinha a mania de varrer a frente da sua residência antes do nascer do sol, ao avistar sua amiga com um pano amarrado na cabeça cobrindo parte do rosto, se aproximou com uma saraivada de perguntas:
- Dona Raquel, o que houve? Feriu-se? Andou caindo? Escorregou no banheiro? E aqueles gritos de Rafael ontem à noite? O que foi que aconteceu minha amiga? Conte mulher...!
- Nada não comadre Nazaré. – Falou Raquel com muita calma – Lembra daquele sinal de carne bem grande que eu tinha no rosto? Por descuido, enganchei o danado no punho da rede e não é que cortou certinho... Quase morri minha comadre, esvaída em sangue... Ainda bem que meu filho Rafael estava em casa!
Do livro: Dez Contos & Cem Causos - Ivan Pinheiro.
Fotos ilustrativas.