Oh Vida! Os teus milagres nem sempre são doçuras, mas não me dês tanto! Não me dês tanto, tanto, tanta amargura. - Escreveu o pensador, o filósofo João Lins Caldas.
No momento que esta universidade realiza o evento ‘III Letras em conferência’ quero dizer que a poesia e a trajetória de João Lins Caldas está contada pela professora Cássia de Fátima Matos dos Santos na sua tese de doutorado, porém, ainda tem muito a se contar e dizer sobre a vida e obra deste genial poeta norte-rio-grandense a quem como insinua Vicente Serejo, “o brasil deve um geste merecido de consagração.”
Tipo magro, baixa estatura, andar curto e ligeiro, voz mansa e rouca, afetuoso, porém, tornava-se tempestivo quando alguém discordava dos seus conceitos, das suas ideias visionárias e, principalmente das suas produções literárias que escreveu aos milhares. Certa vez, Caldas recebera em sua casa de morada certo amigo que o encontrou chorando no instante em que declamava um poema de sua autoria, Aquele amigo saiu-se com essa frase: “Caldas, eu não consegui decifrar o poema que você acabara de recitar!” Caldas respondeu com altivez: 'Coboquinho' (era uma forma generosa que ele tinha de tratar as pessoas), eu estou declamando para os sábios como eu.”
Caldas nascera no município de Goianinha, porém, há quem diga como depõe Francisco Amorim ser p poeta Caldas, assuense.
Chega à fidalga cidade de Assu por volta de 1900, acompanhando seus pais João Lins Caldas e Josefa Leopoldina Lins Caldas. Seu pai era natural de Assu, e sua mãe nascera em Goianinha e carregava os sobrenomes Torres Galvão, ilustres famílias daquele munício do litoral potiguar, cidade onde também nascera o solitário e amargurado poeta que hora relembramos.
Lembro-me dele, Seu Caldas, como ele era habitualmente chamado na cidade assuense. Era eu adolescente, pelas ruas da cidade do Assu terra que ele adotara como sua. Pena que era admirado por poucos e incompreendido por muitos.
Lembro-me dele na sua modesta casa parede e meia, de porta e janela de duas lâminas da rua Ulisses Caldas, do Macapá ou Lagoinha, tradicional bairro de Centro da cidade de Assu, além das suas constantes visitas a casa do meu avô paterno chamado Luiz Lucas Lins Caldas Neto com quem ele alimentava uma amizade desinteressada, sempre vestindo paletó e gravata com aquela simplicidade que lhe era peculiar, declamando seus versos, falando de política local e nacional, contando a sua vida fantástica e atribulada, vivida no sudeste do Brasil.
Caldas produziu uma obra literária (ele tinha a sua própria forma de construção gramatical) multifária, extensa e bela, de invejar qualquer autor, de contextos diversificados com muita obsessão pelo tema morte, assim entende Celso da Silveira, como podemos conferir nos seus escritos.
"Meus mortos vivos nunca apodreceram." - Diz num verso, o poeto de tantas amarguras, amores e dores.
Romântico e apaixonado como sempre viveu, escreveu o esteta Caldas:
Coração malsinado das torturas,
Coração de mulher sem amor ter,
Goza um pouco a ventura de querer
Que este gozo é maior que outras venturas.
Tens, como as dores que hoje tens seguras,
Do amor a porta sem poder se erguer.
Ah! Que ventura se ilusões, das puras.
Hoje pudesse coração, conter!
Mas não! Que o gelo que dá vida à morte
É o mesmo gelo que campeia forte
Nesse teu seio onde batalha a dor...
És para o tédio e para o mal nascido...
Muda essa sorte, coração ferido,
Abra essa porta para o meu amor!...
Seus versos retrata a dor, a angústia, a solidão, o amor fracassado, aliás, teria sido ele, penso eu, um dos poucos poetas brasileiros a escrever poemas com aspectos eróticos (umas das vertentenses da sua obra poética) no Brasil, alheios aos preconceitos da época, seguindo os moldes parnasianos, no começo da primeira metade do século XX como, por exemplo, o poema intitulado “De joelhos,” que o Almanaque Popular Baiano, de Salvador, publicou, para 1909, pág. 116, bem como o soneto sob o titulo ‘Em carne’, escrito em 31 de agosto de 1907, no lugar então denominado Povoação de Sacramento, atual cidade de Ipanguaçu/RN, que evoco neste instante:
Na areia brilhante nos dias de calma
Chegaste. A minha tentação. De joelhos
Me sinto a morder os lábios teus vermelhos...
Caio... E’ a febre... E tu morres e eu morro
Transfigurado a ti pedir socorro...
Vem... chega mais perto... o braço estende
Entre o teu, o meu corpo aperta e prende...
Flores à noite... a madrugada em flores...
E aqui meu coração e os teus ardores...
O silêncio vacila, a treva ordena.
Vamos!... a plateia é deserta... ao palco! Acena!
Afasta as rendas, do teu corpo afasta...
Esta roupa que odeio, esta camisa gasta...
Um trono a madrugada, a relva um ninho.
Deixa... eu aperto a tua mão no meu carinho...
Nua... a tua carne branca num arrepio
Me anuncia o calor a bendizer o frio...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Soo... a tua carne cansa e o coração a vida
Um beijo... mas outro... a tua carne em brasa...
E o meu instinto ao teu instinto casa...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
E esse outro:
Ai! Quando um dia eu te cingir, cativa
De meus afetos, desmaiada e nua,
Tu rolarás como uma chama viva
Quando eu morder-te a fina carne crua...
Tu’alma branca, que em ilusões flutua,
Que à amargura e ao desprazer se priva
- Gás dessa chama que o meu peito atua
Irá rolando loucamente, esquiva...
E sobre a nave desse leito branco,
Bem enlaçados, num aperto franco,
Os nossos corpos rolarão, querida.
Então verei do teu olhar fogoso:
A viva chama que alimenta o gozo,
A viva chama que alimenta a vida.
E esse outro poema produzido nos moldes modernistas intitulado Volúpia, que Caldas, escrevera sedento de amor:
Eu fui perturbar teu sono. Despertar a carne da tua mocidade.
Desgrenhar teu cabelo, dar febre ao teu sangue.
Perdoa, pela minha mocidade.
O lençol revolvido
O travesseiro molhado...
Se houve a tua a tremer, a minha cama na noite não soube também o que era ter sono.
Ainda mais essa joia de poemeto:
Quero-te. Vem. As carnes palpitantes
A forma tua onde a beleza mora...
És tu. Quero-te assim. Meu corpo implora
A graça que desce dos contornos...
Trêmulas as mãos e os lábios mornos.
Caldas mora em Natal entre 1908 e 1912, colabora em jornais daquela capital e envia seus escritos inspiradores para grandes almanaques e folhinhas de farmácia daquela época.
Em fins de 1912, aos 24 anos de idade, regressa ao Rio de janeiro, então Capital da República, mora em quarto de pensão na rua Acre e na rua do Rezende, Centro do Rio. Colaborando em jornais como 'O Globo', com o pseudônimo "Joao Feijó", ganhando pouco, o suficiente para o seu sustento diário, tempos depois emprega-se no serviço público federal (Ministério do trabalho), colabora em importantes jornais e revistas do país, frequenta com assiduidade a Biblioteca Nacional, lendo os maiores autores das letras universais e frequenta as livrarias José Olímpio e Garnier, da rua do Ouvidor, Centro da capital fluminense convivendo com Ribeiro Couto, Guilherme de Almeida, Olavo Bilac, Monteiro Lobato e José Geraldo Vieira, dentre outras figuras que engrandece as letras nacionais.
Em 1917 muito antes da Semana de Arte Moderna, de 1922, começa a cantar no verso livre. O comovente poema intitulado ‘A casa nos conta a sua história’, que no entender de Newton Navarro, expressa “a terrível realidade daquela casa fechada, com restos de morte dos seus mortos mais queridos, sobras de vida pelos móveis, salas, corredores, até no pavio apagado da lamparina tisnenta”, é um exemplo que ele, João Lins Caldas, já escrevia versos brancos, emancipados de métricas. Declamo:
Fechai a casa toda vós todos que estais dentro de casa.
A casa nos vai dizer o seu segredo, a casa nos vai dizer o que é ela
a nossa casa.
Aqui cresceram choros de crianças
Os nascidos choraram
Embalaram-se da rede adolescentes
Velhos saíram nos seus caixões, esticados os pés, hirtos e mudos como tijolos levados.
Escrevi dos meus versos
Pensei dos meus pensamentos amargurados.
O cabelo comprido,
A barba pontiaguda, mal alinhada,
E das mesas, sobre as toalhas velhas
Os pratos fumegantes,
A incidência da luz sobre os armários.
Vamos, irmãos, tudo é entre sombras.
O medo
O cuidado
As mãos mortas,
O pavio do candeeiro,
Tudo é recordado.
... E ao comprido que se balouça esticada,
Uma cabeça, uma cabeleira preta,
Pés que se estiram, mãos alongadas...
Vamos, irmãos, eu que estou reparando, de retrato, esse quadro que se alonga ao longo da parede.
No eixo Rio-São Paulo, Caldas escreveu treze livros que para Celso da Silveira “tinham títulos que já valiam poemas.” Antes, porém, quando morava em terras potiguares teria escrito quatro livros. Pena que ficaram apenas organizados em cadernos e depois destruídos pelas traças, por guardá-los em malas e caixotes com precariedade ou por não saber onde guarda-los em razão, talvez, da sua genialidade que lhe deixava atordoado.
Entre 1912 e 1927, permaneceu no Rio de Janeiro. Em 1927 regressa a Bauru, interior de São Paulo já com emprego garantido na estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB), ferrovia vinculada ao Ministério da Viação, onde colabora no jornal ‘Correio de Bauru’. Ali começa um processo investigativo, denunciando ao Supremo Tribunal Nacional (hoje Federal), supostas irregularidades praticadas por alguns auxiliares do ministro da Viação José Américo de Almeida. Fato este, talvez, motivou o presidente Getúlio Vargas que tinha conhecimento da sua existência, aposentá-lo precocemente, aos 45 anos de idade, percebendo um salário miserável. Inconformado, Indignado escreveu a Vargas mensagens telegráficas:
“A inconsciência nacional manifestou. Mas Deus é consciência e eu ainda espero em Deus.”
Sem obter resposta enviou outra mensagem ao estadista Vargas (que não se sabe ao certo, se aquelas mensagens telegráficas chegaram ao conhecimento daquele presidente), dizendo assim:
“Se não guardou nome amigo que por Vossa Excelência tão denodadamente lutou guardará nome inimigo que por Vossa Excelência tão denodadamente lutará.”
Volta em 1933 ao Rio Grande do Norte, a cidade de Assu, terra que escolhera para viver a sua maturidade, decepcionado e desiludo por não ter conseguido publicar-se trilíngue: português, inglês e francês, cujo trabalho se tivesse publicado, certamente teria alcançado a glória, teria tido o reconhecimento e se tornaria um dos nomes mais representativos da poética universal.
Em 1936, o poeta que não conseguiu a sua aspiração maior: ganhar um Prêmio Nobel de Literatura com a publicação da sua obra, imortalizou-se, pois foi colocado como protagonista na segunda fase do romance urbano de ficção, “essencialmente carioca” intitulado Território Humano, do escritor, seu amigo íntimo, o paulistano José Geraldo Vieira, nascido nos Açores, Portugal, considerado por Érico Veríssimo como “o mestre do romance Brasileiro”, encarnado no personagem "Cássio Murtinho".
Em 1975, Celso da Silveira organizou a antologia póstuma de João Lins Caldas intitulada Poética, editada pela Fundação José Augusto, cujo livro chegou às mãos do poeta pernambucano Mauro Mota que aquela época, 1974, ainda dirigia o Suplemento Literário do 'Diário de Pernambuco', pois, ao ler o citado livro Mota externou (nota publicada naquele periódico) que naquela coletânea tem três ou quatro poemas que são dos mais belos da língua portuguesa, incluindo o célebre e universal poema sob o título ‘Isabel’, que Caldas escreveu logo após presenciar um cortejo fúnebre passar a sua frente, na grandeza do seu poetar:
Uma Isabel morreu no mundo.
Tinha pai e mãe, irmãos e sobrinhos, aquele mundo de primos no mundo.
Avós enterrados, bisavós trepidantes nos cernes duros de árvores agigantadas.
Ascendentes outros na nervura de asas e barbatanas de peixes.
Isabel hoje estava cansada.
Remontava das suas origens a dias muito anteriores aos dias de Tebas,
Viveu de fresco os poemas de Homero,
A guerra de Tróia,
O passado de Sócrates,
E, caída Cartago, soldados ruivos, assalariados, mortos.
Não soube nada d sua crônica.
Era uma mulher, vestida de saia, os cabelos compridos
E se alimentava de pão, rapadura e mel.
Isabel tinha linhas nas mãos.
Uma sorte que estava escrita, diferente sem dúvida das outras sortes.
O destino de Isabel, o destino da vida como dos outros que carregam a morte.
Eu nunca vi Isabel.
Finalizo, pois, nas palavras de Berilo Wanderley ao afirmar que João Lins Caldas "tem poemas que pode figurar numa antologia dos melhores poetas do mundo."
Muito obrigado.
Fernando Caldas
Assu, 25.05.2017.
Comentário no Blog: https://blogdofernandocaldas.blogspot.com/
João Celso Neto Conheci Caldas "desde que nasci". Em 43, ao nascer minha irmã, ele escreveu: "na casa de Hélio e Dolores/ longe de males e insânia/ têm, tendo Márcia Bethânia/ todo seu mundo de flores". Mesmo morando em Natal, de 49 em diante, nas minhas férias eu estava sempre no Açu e ali era raro o dia em que não nos encontrávamos. Lembro-me de sua ida a Natal (Djalma Maranhão, o prefeito) em 1958 e praticamente não desgrudei dele o tempo todo. Mantínhamos uma estranha relação de amizade, dada a diferença de idade, e admiração. Guardo com o maior cuidado uma página em que ele escreveu mais de uma dezena de seus versos, autografando cada qual, às vezes entortando o papel e escrevendo-os na vertical. Sempre soube e reconheci sua genialidade, independentemente.de sua condição de personagem de Território Humano (muita gente acha isso o auge de sua vida e eu acho bem mais importante a leitura, pela BBC de Londres, de seu poema "Minha dor na grande guerra", por exemplo). Tio Celso, no livro Poética (74), fala do último projeto de Caldas: a publicação, enfim, de um livro, ele que morreu inédito. A ambição era desmedida, queria uma edição trilíngue, com seus versos vertidos para o inglês e o francês. Não sei se de brincadeira, pediu-me que ajudasse nas versões para os dois idiomas. Não me lembro precisamente quando nos vimos pela derradeira vez, mas deve ter sido nas minhas longas férias de 63/64 passadas no Açu. Eu começara a escrever meus poemetos em 1962 e levei, escritos à mão, alguns deles para Caldas, e ele disse ter gostado. Audácia minha mostrar minha modesta produção ao gênio. Em encontro de junho ou julho de 63, ele me mostrou seu poema sobre a dor de Jacqueline Kennedy com a morte do marido, que me inspirara também a escrever um poema. Ele não me chamava de Caboclinho, mas de Joãozinho.