Bonde
da linha do Alecrim, fotografado em fins de 1942, pelo oficial da USAAF
Robert C. Henning.
Fonte – Livro Eu não sou herói-A história de Emil
Petr, de Rostand Medeiros, 2012, pág. 92
Este texto foi originalmente produzido por Augusto Severo Neto e
publicado no Jornal Dois Pontos, edição semanal de 15 a 21 de junho de
1984, na sua coluna “Ontem vestido de menino – XXX”. Eu li e guardei
esta página ao longo destes quase 30 anos, com um desejo de não esquecer
os registro de uma Natal que não existia mais, que não conheci, mas que
achava importante conhecer através dos escritos de quem viveu naquela
época. Infelizmente não consegui conservar perfeitamente este documento,
as traças levaram um pedaço, mas o que trago dá uma ideia do meio de
transporte mais marcante da antiga Natal
Quando eu “cheguei”, os bondes puxados a burro já haviam dobrado a
esquina do tempo. Também já haviam desaparecido as empresas que haviam
explorado esse lírico meio de transporte. Primeiro foi a Ferro Carril de
Natal, nos fins de março de 1908, no governo Alberto Maranhão, que,
naturalmente, como magistrado supremo desta simpática sesmaria que é o
Rio Grande do Norte, Capital Natal, presidiu a instalação solene deste
meio de transporte.
E houve aquela pressa em assentar os trilhos, em comprar os bondes,
que vem lá de longe, de Belém do Pará, e em adquirir os burros de
tração, para tirar as viaturas. Eram burros de raça, fortes e custaram
uma nota. R$ 250.000 (Duzentos e cinquenta mil reis) cada.
O primeiro trecho da linha ia da rua Dr. Barata à Praça Padre João
Maria. Na “viagem” inaugural, ocupavam os assentos do novo transporte, o
Governador Alberto Maranhão, o Senador Ferreira Chaves, o Deputado
Juvenal Lamartine, o Presidente da Intendência Joaquim Manoel Teixeira
(cargo equivalente atualmente ao de prefeito), algumas pessoas gradas e,
naturalmente, os dirigentes da empresa.
As linhas foram se estendendo e chegaram até o Esquadrão de Cavalaria
(onde funciona hoje a Escola Doméstica). O preço da passagem era de R$
000.100 (cem réis, ou um tostão como chamavam). O primeiro acidente
ocorreu em fevereiro de 1909, quando as rodas de ferro do veículo
cortaram uma das pernas do garoto Antônio Pereira Dias.
Em 1911, o Governo tomou à França um empréstimo de R$ 4.214,274$830
(quatro milhões e duzentos e quatorze mil contos, duzentos e setenta e
quatro mil e oitocentos e trinta réis). Com esse dinheiro Natal teve luz
e bondes elétricos, além de telefones. Crescia o conforto moderno da
cidade. Isso tudo foi inaugurado em outubro daquele mesmo 1911. A
Empresa de Melhoramentos de Natal, Vale de Miranda & Domingos Barros
passou a gerir e explorar os novos melhoramentos da cidade. As linhas
de bondes se estenderam ao Alecrim, até o Hospital dos Alienados. Em
1912 chegaram a Petrópolis. Em 1913 iam até o Tirol, onde se encontra a
sede do Aero Clube. Em 1915 atingiam a praia de Areia Preta.
Foto
da revista Life, realizada em fins de 1941, ou no início de 1942,
mostrando um típico bonde de
Natal nos cruzamento das Avenidas Duque de
caxias e Tavares de Lyra, no bairro da Ribeira.
Vale de Miranda e Barros se separaram e os serviços de bondes, luz e
telefones estiveram a ponto de
ir para o brejo, nas mãos da nova
arrendatária, Cia. De Tração, Força e Luz. Aí o Governador deu uma
de
durão e acabou com a moleza. Mandou executar a Força e Luz. Em 1930, uma
outra Cia. Força e
Luz do Nordeste do Brasil assumiu a coisa, tendo a
frente o inglês Mr. Brown, genro de Juvenal
Lamartine. Foi aí que eu
comecei a tomar conhecimento, de mesmo, com os bondes de Natal.
Com o passar dos anos, eu e os bondes, adquirimos uma grande
intimidade. Chegava a sofrer com ele
(se não participava do troço),
quando, na subida da Avenida Junqueira Aires, defronte do velho
Atheneu,
os estudantes passavam sabão nos trilhos e o coitado ficava patinando
no mesmo lugar,
sem conseguir chegar ao fim da ladeira. Tinha aquelas
vezes que, até a “viagem” até o Aero Clube do
Tirol, a gente tomava o
lugar do motorneiro e, a nove pontos e muitos gritos, víamos passar as
mangabeiras da antiga Rua Jundiaí, ainda sem calçamento e as poucas
construções da Avenida Hermes
da Fonseca, entre as quais o Esquadrão de
Cavalaria e a casa do Dr. Varela Santiago. O bonde
corcoveava que só
montanha russa e, aqui e ali, a lança saltava e a gente tinha de
recolocar no lugar.
Já tatuado e metido a sebo, junto com alguns colegas, eu descia de
bonde até à Ribeira , para ir a
“zona”, pagar o meu tributo as
mulheres-damas. Quando o bonde passava defronte de minha casa,
na
Junqueira Aires, eu baixava a sanefa e os outros passageiros punham a
mao para fora, para ver se
estava chovendo.
Um dia os bondes começaram a falecer, até que morreu o último, de
abandono e ferrugem, em um
galpão sem nenhum conforto. Ainda hoje sinto
saudades daquela alegria amarela (a cor tradicional
dos bondes), lírica e
barulhenta que cortava as ruas de Natal.
SOBRE O AUTOR – Augusto Severo Neto é oriundo de uma família
de tradição que remonta ao
século XVII e que deu ao Rio Grande do Norte
nomes ilustres como os governadores Pedro Velho
e Alberto Maranhão, o
prefeito Djalma Maranhão, o revolucionário André de Albuquerque e o
pioneiro
da aviação, Augusto Severo, entre outros. Sua vida profissional
teve origem no comércio.
O carisma do seu ilustre avô incentivou-o a tentar, por um certo
período de tempo, o campo da
aviação civil. Espírito inquieto, não
tardou a largar as linhas aéreas para abraçar o jornalismo, atividade
em
que se revelou um cronista sensível às fraquezas e grandezas humanas,
em que realizou um
trabalho marcante, que tocou as fronteiras do
jornalismo e da literatura.
Foi membro correspondente da Academia Paulista de Letras (na vaga de Câmara Cascudo),
professor universitário (cargo em que se aposentou na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
e viajante.
Esta última atividade, “por fome de vida”, segundo a sua mulher,
Maria Lúcia Beltrão. Mas, na opinião
dela, a principal atividade de
Augusto Severo Neto foi “viver e ser feliz”. Formado em Jornalismo
pela
UFRN, colaborou em diversos periódicos do Rio Grande do Norte de outros
estados desde
1942. Sua galeria Vila Flor, foi, nos anos 70, importante
ponto de encontro de intelectuais e
artistas natalenses.
Apaixonado pela cultura européia, sobretudo a de extração latina,
empreendeu dezenas de viagens ao
Velho Continente, o que lhe rendeu
alguns livros de memória e uma impressão pessoal sobre Paris,
cidade a
que devotava uma admiração especial. A vida cultural natalense, com seus
tipos boêmios
e poéticos, também lhe chamou atenção. Em De Líricos e de Loucos, Augusto Severo Neto presta
tributo a essas personagens, sob a forma de crônicas.
Ao morrer, seus amigos escolheram como epitáfio para o seu túmulo, os versos:
Há caminhos de luz escondidos nas trevas
Para achá-los, porém, é preciso ir sozinho.
Os versos são do próprio poeta. Seu corpo foi sepultado no cemitério
da vila de Pirangi, litoral sul
potiguar, que ele mesmo escolheu como
sua última morada.
(texto de Nélson Patriota)