Por Washington Araújo
Chegamos a idade, em que a vida para de nos dar, e começa a nos tirar. E a vida nos tirou nossa amada mãe. Uma mulher extraordinária que viveu em tempos muito turbulentos. Vigorosa e cheia de um entusiasmo exuberante: sorria e fazia sorrir, no frio nos aquecia, no desâmimo nos incendiava com atitudes nobres e gestos de generoso carinho. Uma mulher para quem a vida não foi fácil, na realidade, nunca foi fácil.
Filha de uma família muito pobre e também muito generosa, nossa mãe ficou órfã de pai aos 8 anos de idade e logo depois, ainda contando meros 9 anos de idade ficou também órfã de mãe e, na condição de filha mais velha de cinco irmãs menores - todas Marias - recebeu a incumbência de sua mãe Marina, em comovente poema escrito pouco antes de morrer para que cuidasse, zelasse e encaminhasse na vida suas pequeninas irmãs.
E foi assim que dona Conceição passou sua luminosa existência de 77 invernos, outonos, verões e primaveras, todos bem vividos, escavando na marra o rosto fugidio da felicidade no frio mármore com que se lhe apresentava a vida. E ao tempo em que trazia a existência junto com seu amado marido e nosso exuberante pai nada menos que cinco filhos e uma filha.
E então, na madrugada desta quarta-feira, dia 20 de janeiro, faltando apenas seis dias para o quinto aniversário em que ela se despediu de nosso amado pai, após 56 anos de um casamento feito de duradoura cumplicidade, eis que a morte lhe chegou na sua antiga locomotiva. E como dizia o poeta: "A morte sempre chega pontualmente na hora incerta..."
Nossa mãe não foi ninguém importante, mas apenas uma mulher simples, com pensamentos comuns, sabedoria e senso de humor bastante incomuns. Ela levava uma vida comum. Nenhum monumento lhe será dedicado, nenhuma praça, rua ou avenida terá o seu nome. Para o geral das pessoas que bem pouco lhe conheceram, seu nome logo será esquecido. Mas, eu lhes garanto - e com absoluta convicção lhes afirmo -, em um único aspecto, ela obteve sucesso como ninguém jamais teve: Nossa mãe era alguém que nos amava de coração e alma. E isso sempre foi o bastante para todos os que foram privilegiados com sua maravilhosa amizade, seus belos sorrisos, seu companheirismo e amizade inigualáveis.
A verdade é que dona Conceição, a filha de Paulino e Marina, a apaixonada Maria de Adonias, a mãe de Venâncio, Abraão, Tom, Lanna, Junior e Leyder, a irmã devotada de Zuleide, Socorro e Nubia tentou viver a vida o melhor que pode.
E achamos que ela conseguiu isto.
Todos os filhos do mundo sempre amaram todas as mães do mundo. E isto é a mais pura e límpida verdade. Penso, como um de seus seis filhos apaixonados para os quais foi ela uma heroína luminosa, que nós sentiríamos a sua falta até mesmo se não a tivéssemos conhecido. Isto porque, a conhecessemos ou não, ela nos conhecia como ninguém, a cada um de seus filhos e nos amava sempre que Deus lhe sorria. E Seu Criador lhe sorriria bastante ao longo de sua existência
Desde esta última madrugada é como se o mundo tivesse mudado de eixo. Porque o que realmente importa na vida é o que se faz com o tempo que nos é dado.
Enquanto estava no avião, madrugada afora, me dei conta já por algumas poucas horas que, pela primeira vez em nossas vidas, eu e meus irmãos nos sentimos completamente órfãos de pai e de mãe. E este sentimento de profunda solidão e quase palpável desamparo trazia consigo um gosto bastante amargo.
E como isso é penoso, doloroso, como se alguém nos tivesse puxado de uma única vez o próprio chão de debaixo de nossos pés.
E então nos perguntamos, aquiescentes e submissos à vontade de Deus, nosso Mais Amado, fonte de nossa vida e luz: "Por que as pessoas boas se vão cedo demais?" E logo nos incandescia a imaginação tão singela resposta: "Deve ser porque Deus as quer por mais tempo ao seu lado!"
Por outro lado, sabemos que em cada pedaço de nós, filhos, irmãs, netos e sobrinhos, desde esta madrugada sempre haverá um pedaço dela vivendo alegremente em cada um de nós.
Sabemos que não se inventam novas mães, assim como não se inventam velhos amigos, velhos camaradas, pessoas que compartilhavam nossas melhores lembranças, nossos mais sofridos dias. E isto é trágico. Muito trágico.
O que nos conforta então? A compreensão de que somente o Espírito, se soprar o barro, pode criar o homem. A fé no ensinamento divino de Bahá'u'lláh, a Glória de Deus, a nos dizer que este corpo físico é como uma gaiola e o espírito, o pássaro que nela habita. Rompida a gaiola, o pássaro, feliz, leve e saltitante, cheio de adoráveis gorjeios, pontuados por infinitos louvores a Deus, alça voo até alcançar a meta final de cada ser humano - buscar alcançar a doce e acolhedora Presença de Deus. Sim, isto nos conforta, consola e nos renova para seguir avante e viver tudo o que tem de ser vivido. E até a última gota. Porque viver não mata. Amar não mata.
A propósito, uma sacada: O reino dos céus é uma condição do coração e não algo que cai na terra ou que surge depois da morte. E não seria justo se neste momento solene e dolorosamente fértil deixássemos de testemunhar que nossa mãe foi e continuará a ser a chave para nossa paz de espírito.
Porque ela nos fez sentir pessoas melhores. E também por sabermos que quando nossas almas estava nos "achados e perdidos" foi ela, dona Conceição, que veio nos resgatar.
Mas então você descobre que nem ao menos sabe o que é a perda. Porque ela só ocorre quando você ama alguém muito mais do que você mesmo.
E isto nos faz lembrar estes versos da poeta Elizabeth Browning: "Amo-te com o doer das velhas penas; Com sorrisos, com lágrimas de prece, E a fé da minha infância, ingênua e forte. Amo-te até nas coisas mais pequenas. Por toda a vida. E, assim Deus o quiser, ainda mais te amarei depois da morte."
Eu sempre vou amar você, minha doce mamãezinha, aconteça o que acontecer e como desejaria só que você soubesse que estar ao seu lado foi a melhor coisa que já nos aconteceu como seus filhos.
A medicina obteve sucesso em tantas esferas que acabamos delegando a ela também os cuidados com o envelhecimento e a morte. Só que a maioria dos profissionais de saúde não está preparada para lidar com esses dois processos, que são irreversíveis.
O resultado é que criamos uma estrutura que esvazia de sentido os momentos finais de uma pessoa. Para evitar que idosos se machuquem, roubamos-lhes o que ainda têm de autonomia, confinando-os a asilos e hospitais. Para tentar prolongar a vida de pacientes de câncer, submetemo-los a tratamentos com pouca chance de sucesso e que acabam com a qualidade da vida que lhes resta.
Nos últimos quatro meses em que a senhora, mamãezinha linda, esteve se alternando entre sua acolhedora casa, o hospital e a UTI, a verdade é que alguns dias dormindo ao seu lado eram muito doloridos, mas as horas em que tínhamos de nos ausentar de sua amável presença eram bem piores, muitíssimo piores. E o dolorido tornava-se além de doce, necessário.
Prometo de alma escancarada e peito aberto que nunca vou esquecer que esse é um amor para toda a vida. E quando digo "toda a vida" não me refiro apenas a essa única, pequena e fenomenal vida em que o Espírito transforma nosso corpo em "templo humano". A vida a que me refiro é principalmente aquela que começa após constatarmos que o templo humano tem prazo bem curto de validade. E que essa despedida tão inesperada será não mais que a antesala para nossa futura reunião eterna, aquela que abarca todos os mundos de Deus. E para a qual o conceito de tempo e espaço são absolutamente impróprios e inadequados.
A verdade minha abençoada mãe é que eu teria desistido de tudo por mais um dia com você. E agora entendo o drama de Tristão e Isolda: "Você tinha razão, não sei se a vida é maior do que a morte, mas tenho certeza de que o amor é maior que ambas."