MÃOS DADAS
março 31, 2018
Em tempos de intolerância, gritos engolindo argumentos e as diversas
impossibilidades de diálogo, é importante um momento de pausa e de tentativa de
entendimento do que somos, como indivíduo, como grupo. Cada poeta, dentro do
seu próprio contexto histórico, deseja ser voz de algo para além de si. Alguns
cantam a coletividade do seu povo e de sua história, como Camões e Euclides da
Cunha. Outros, cantam o amor interno projetado em amor literário, como Camões e
Florbela Espanca. Outros criam obras de grande engenho e arquitetura, pelo jogo
de palavras e linguagens, como Camões e Olavo Bilac. (Sim, Camões está em tudo,
mesmo quando não está).
Nesse
sentido, antes de punhos fechados em ira, invoca-se aqui a busca de Carlos
Drummond de Andrade pela compreensão de sua “missão” (se é que há uma) e de seu
trabalho (que é um, sendo muitos). Em “Mãos dadas” (publicado em Sentimento do mundo, em 1940), há uma tentativa de
autodefinição, tanto pela negativa, quanto pela afirmação, e é no equilíbrio
entre ambas que se revela a função da arte, do artista e do homem que pensa e
sente.
Sem
mais, vamos a ele:
MÃOS DADAS
(Carlos Drummond de Andrade)
Não
serei o poeta de um mundo caduco
Também
não cantarei o mundo futuro
Estou
preso à vida e olho meus companheiros
Estão
taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre
eles, considero a enorme realidade
O
presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos
afastemos muito, vamos de mãos dadas
Não
serei o cantor de uma mulher, de uma história
Não
direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela
Não
distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida
Não
fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins
O tempo
é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes
A vida
presente
***
O poema
é curto, mas o caminho é longo.
Todo ele
se constrói em negações (voltadas a si) e constatações (apreendidas dos
outros). As duas estrofes, numa visão um pouco ligeira, poderiam se distribuir
em: poeta sobre o mundo; poeta sobre si mesmo. Mas claro que o poeta estará no
mundo, e o mundo estará no poeta…
Logo no
início, nos dois primeiros versos, há uma limitação temporal: o poeta não se
voltará ao tempo já passado, nostálgico e enganoso (“mundo caduco”), nem a um
“mundo futuro”, igualmente enganoso e utópico. Como se estivesse entre duas
miragens distantes e sedutoras, o poeta desvia-se e mantém-se “preso à vida”,
ao agora diante dos companheiros.
Essas
pessoas todas, como ele, indivíduos no mundo, “estão taciturnos mas nutrem
grandes esperanças”. O olhar do poeta para eles obedece a um movimento exterior
e interior: por fora, vê-os tristes, fechados, recolhidos; mas sente que, por
dentro, cada um conserva ainda uma esperança possível.
Para
tentar resolver essa dualidade e, além disso, enfrentar a realidade (enorme) e
o presente (grande), Drummond só vê uma saída: não nos afastarmos e irmos de
mãos dadas. O título então se revela, precisamente no verso do meio do poema,
tornando-se o ponto central do olhar do poeta. É preciso ir de mãos dadas,
unidos, para que haja esperanças.
A
segunda estrofe, por sua vez, desloca-se para uma forma de metalinguagem, isto
é, sobre o que o poeta escreveria. Por certo que isso é feito com muito mais
espaço em “Procura da poesia” (que deve ser lido!), mas aqui, pelo “Não”
contínuo que inicia boa parte dos versos, Drummond prepara justamente o que
fará.
Todas as
ações decorrentes do “Não” mostram-se como fugas. Cantar uma mulher ou uma
história, os suspiros ou as paisagens imóveis da janela são temas poéticos que
se esquivam de encarar o mundo. A mulher será a musa elevada, a história será
de um passado ou de uma imaginação, os suspiros terminam em si mesmos e as
paisagens apenas revelam o mundo lá fora, sem envolvimento. Os entorpecentes
são meios de sair da realidade, ao menos por instantes, e as cartas de suicida
sugerem essa súbita ruptura com a vida. A poesia pode ser isso, desejo de fuga,
mas isso, para o poeta, não resolveria nada. Seria tão útil quanto fugir para “as
ilhas” (como isolamento físico) ou esperar que “serafins” o raptassem (e
levassem para onde?).
Por isso
que, buscando aproximar-se daqueles que o acompanham, define sobre o que falará
e agirá: o tempo. Havendo aqui uma série de conjunções, o tempo presente, os
homens presentes, a vida presente. Assim, o tempo, os homens e a vida são as
coisas que realmente importam.
O poeta
quer isto: as mãos dadas com todos, não para viver numa realidade paralela e
ilusória, mas sim para levantar as esperanças, encarar a realidade e
impulsionar o tempo presente e a vida presente.
Os
leitores também devem querer isso. Saber que cada leitura age diretamente sobre
si e, a partir disso, alguma coisa se deve modificar. Saber, também, que um
livro não tem qualquer poder sobre o mundo. Mas as pessoas que leem, essas têm
muito. Especialmente quando vão de mãos dadas.
E pronto!
Por Saulo Gomes Thimoteo