Eduardo Alexandre Garcia
Neste primeiro texto enviado ao Substantivo, sobre
nossa Natal nos anos 40, homenageio duas paixões: meu pai e sua cidade, esta
última herdada dele, como se vê e se sente na crônica abaixo. E para dizer mais
sobre meu pai, José Alexandre Odilon Garcia, seguem palavras de Wilson Bezerra
de Moura: “Um homem agradável, amigo leal, claro em seus pontos de vista,
respeitado quando falava sobre determinado assunto levado ao conhecimento público
através da imprensa natalense, onde periodicamente escrevia, porque era senhor
absoluto do que dizia ao apontar determinado fato. Culto, bom advogado na
cidade onde nasceu e por toda uma vida fez parte dela no desempenho da
atividade profissional, uma razão suficiente para merecer o afeto e carinho de
todos.”
Por José Alexandre Odilon Garcia
Natal nos
anos 40 era cidade modorrenta e provinciana, 40 mil habitantes espremidos entre
Ribeira e Cidade Alta, até a avenida Deodoro, se muito. O resto era a pobreza
franciscana das Rocas, os sítios do Tirol, a mata de Petrópolis, o Alecrim
ensaiando os primeiros passos.
Sem
muitas perspectivas. Mesmo os filhos da terra, faziam feroz autocrítica.
– Cidade
do já teve, classificavam, ironizando a apatia reinante, onde a maioria se
masturbava sadicamente quando iniciativa das mais audazes entrava em colapso.
– Uma
fazenda iluminada, nada mais, definia João Machado.
Mas,
assim como as pessoas, as cidades têm o seu instante de afirmação, o seu dia de
superação, o empurrão providencial, o chamado passo a frente decisivo e
consagrador.
Para
Natal, este momento foi a II Grande Guerra, ou, para sermos mais minudentes,
justamente na fase em que, triunfantes e arrogantes – ocupadas e vencidas a
Polônia, a França, os Países Baixos e Nórdicos, humilhada a Inglaterra no
desastre de Dunquerque – os germânicos voltaram cobiçosos olhos para as
reservas petrolíferas do Continente Negro.
– Estamos
vivendo os primeiros anos do I Milênio do III Reich – perorava Hitler em seus
histéricos discursos.
E, de
fato, a Germânia parecia a senhora do mundo, com suas moderníssimas armas, as
blitzs, o rolo compressor das pan-diviziones, as minas espalhando terror pelos
mares do mundo.
Os
aliados, então, concluíram que se os nazistas realmente se apoderassem do
petróleo africano, tudo estaria perdido.
E
resolveram enfrentar o invicto Von Rommel de peito aberto, frente a frente, na
base do agora ou nunca.
E onde
entra Natal neste imbróglio, perguntarão vocês.
Natal,
que dormitava sonolenta
Natal, dos tempos idos de 40
Recordo os belos bailes do Aéro
Num banco da Pracinha, ainda lhe espero
No Rex, sessão das moças, Quarta-feira
Natal, Cidade Alta e Ribeira
O bom você não sabe e eu lhe conto
O footing, à tardinha, no Grande Ponto!
É que
Natal, como cidadela mais próxima da costa africana, era ponto estratégico por
excelência, de importância vital, reconhecida e proclamada posteriormente como
Trampolim da Vitória.
E pela
Base de Parnamirim passaram a transitar, às centenas, diuturnamente, fortalezas
voadoras transportando tropas, armas e víveres para fronts até então
desconhecidos internacionalmente, mas que seriam celebrizados mais tarde como
Tobruck e El Alamein, como os primeiros grandes passos da grande arrancada que
seria, daí por diante, a caminhada até a parada final em Berlim. Enfim, a
suspirada “virada” que transformaria os até então vencidos em vitoriosos.
Para
garantir esta operação-África, foi preciso o suporte e o apoio logístico de
milhares de brasileiros e estrangeiros, principalmente americanos que
estabeleceram uma praça de guerra chamada Natal.
Uma base
naval foi construída em tempo recorde, ampliadas e triplicadas as instalações
da base aérea, construídos quartéis à toque de caixa, para alojar não apenas os
infantes, mas grupos de artilharia antiaérea, de carros de combate,
transferidos do sul do país.
Foi a
época das noites de blecaute, do receio de ataques inimigos, dos ricos a
construir abrigos sofisticados em suas residências e a Prefeitura a cavar
abrigos populares em praças e terrenos baldios.
Eu disse,
acima, praça de guerra? Pois era.
Um dia,
tudo se modificou
O burgo se internacionalizou
Nas ruas, o alegre do my friend
Moçada, pela mímica, se entende
Natal entrou fardada na História
Para ser o Trampolim da Grande Vitória
Valeu o sacrifício do seu povo
Na guerra, meu Natal nasceu de novo!
E além do
soldado e do marinheiro verde-amarelo, tornaram-se figuras corriqueiras a
povoar avenidas, ruas e becos da cidade, gorros de marinheiro e fardas cáqui
dos my friends.
Digo
mais: quando a batalha africana atingia o seu clímax, Natal passou a ser a
cidade-descanso, a cidade dos dias de licença dos combatentes.
E o que
almejava um jovem de 21, 22 anos, com os bolsos cheios de dólares, doidos para
esquecer a loucura dos campos de batalha e as longas vigias a bordo de
belonaves? Divertir-se, gozar o hoje em toda plenitude, pois o amanhã era uma
incógnita.
Na
Cidade, então, floresceu um estranho comércio de bares, restaurantes, casas
noturnas, joalheiros, grandes magazines, mercadores de mil e uma especiarias,
99% dirigidos por aventureiros de todas as nacionalidades e pátrias. Os quais,
como tão céleres e misteriosamente aqui se instaram, também, num abrir e piscar
d`olhos, cerraram portas e fizeram malas.
Quando
terminada a Batalha da África, com a vitória aliada, as operações militares
retornaram ao continente europeu, começando pela bota italiana da Sicília.
Mas,
voltando à Natal nos anos 40, era natural, pois, que num clima de febricidade
como aquele, houvesse freguesia para todos os gostos, mesmo os paladares mais
requintados, a exigir bombons de luxo, doces em conserva, bebidas finas,
artigos enlatados e conservas em geral.
Como
disse o compositor em música, “na Guerra, meu Natal nasceu de novo”. Foi.
Porque, desde então, o progresso instalou-se definitivamente como artigo de fé
no burgo, arquivada, bem arquivada, aquela maldição e pecha infamante de terra
do já teve.
Como quem
queria recuperar o tempo perdido, Natal nunca mais parou de crescer, de
expandir-se e ampliar-se em novos horizontes, de abrir novas artérias e, das
artérias, multiplicar-se em novos bairros, povoando-os de belas residências.
O
comércio, então, tornou-se tentacular, cada dia maior, ganhando a Cidade Alta,
atingindo com força total o Alecrim.
Um
pequenino detalhe que virou rotina e que até então ninguém dava a mínima
importância: quem chegava ao burgo gostava de seu jeitão, do clima, da brisa
que sempre sopra, vinda do Atlântico mesmo nas tardes mais quentes. Da beleza
paradisíaca de suas praias. Da maneira de ser do seu povo simples, a
transformar, em cinco minutos, em amigo do peito, cidadão a quem nunca vira
mais gordo, e a levá-lo para sua casa e a franquear-lhe as delícias de sua mesa
típica.
A carne
seca com feijão verde, macaxeira, farofa de bola, manteiga de garrafa, peixada,
a caranguejada, o sarapatel, camarões, lagosta, a boa caninha com caju de
conta.
Acrescente-se
este ar de permanente feriado que a cidade tem, a pedir pernas para o ar,
lazer, languidez, alegria, boemia, violão, seresta, amor…
Fonte: http://substantivoplural.com.br