Os anos dourados da Praia dos Artistas começam na década de 70, quando a grande frequencia da galera que fazia teatro, artes plásticas e música começou a frequentar aquele pequeno trecho de areia. Por causa exatamente desses frequentadores é que o local terminou conhecido como Praia dos Artistas. A partir das onze horas da manhã, o pedaço começava a se encher de gente.
No barzinho que ficava embaixo do Salva-Vidas, o Caravela, ficavam os surfistas e os campeonatos de surfe também eram famosos, apresentados ao microfone com muita gíria e loucura.
À noite, nos dividíamos entre o Castanhola e o Asfarn, bares onde comíamos isca de peixe com molho rosé e sempre havia confusão na hora de pagar a conta. No Asfarn, havia uma cadelinha chamada Nuvem, adotada como mascote pela turma.
Na eleição de 1976 – se não me engano – nos juntamos todos num mutirão para eleger Sérgio Dieb nosso vereador, o que fizemos, e era uma graça ver Serginho usando paletó e gravata, dizendo "Vossa Excelência podes crer..."
Eram dias e noites de muita criação. Poesia, literatura, teatro, música, cada um naquilo que sabia fazer. Tudo isso ao som de Belchior ("Eu sou apenas um rapaz..."), Fagner ("Ave noturna"), Ellis Regina ("Como nossos pais"), João Bosco ("Transversal do tempo"), Gonzaguinha ("Doidivanas"), Milton Nascimento ("Paula e Bebeto") e Chico Buarque ("Meus caros amigos"). Bebíamos qualquer coisa que contivesse álcool e os nossos vestidos eram bordados de lantejoulas. Os rapazes (com exceção dos que faziam política) usavam camisas floridas e cabelos enormes e passávamos a noite de bar em bar. Às vezes, a violência da ditadura descia o seu punho selvagem sobre nós, e os tiras entravam nos bares, ameaçavam todo mundo, derramavam no chão o conteúdo de nossas bolsas. Mas na maioria das noites tudo era curtição na República Independente da Praia dos Artistas onde amanhecíamos o dia e muitas vezes subíamos direto para a Faculdade, onde tentávamos assistir às aulas, mortinhos de sono.
Daquele núcleo de gente maluca surgiu a Banda Gália, que revolucionou o Carnaval de rua na cidade e que também fez história, em época posterior.
Mas o movimento da vida é esse mesmo, e como diz João Bosco na música memorável não podemos ficar "parados dentro dum táxi, numa transversal do tempo". Mudamos, evoluímos, crescemos, ficamos mais velhos e hoje somos empresários, profissionais liberais, políticos e, é claro, artistas. Alguns já se foram: Sergio Dieb, Chico Miséria, André de Mello Lima, Malu Aguiar...
Não podemos mais viver aquela época, que pertence ao passado. O que dá tristeza é ver aquele belo pedaço de praia, que foi palco de um momento de intensa efervescência cultural para a cidade entregue ao abandono e ao descaso. No nome da praia – Artistas – está a sua vocação e seu destino. Talvez com um centro de Artes e um pequeno espaço para shows e espetáculos de teatro – um teatro de bolso, com uns 100 lugares – a Praia dos Artistas poderia ser conduzida de volta ao seu clima original. Fica o recado para os donos do poder e do dinheiro que, quando querem, podem e pagam.
Extraído do texto de Clotilde Tavares