Públio José – jornalista
Quando o leite ferve, o resultado da elevação da temperatura impulsiona para cima a parte mais gorda, mais substanciosa do leite – conhecida como nata. Segundo os estudiosos, é a separação do melhor que o leite tem para oferecer. De tão rica, de tão encorpada de nutrientes, a nata se desdobra numa infinidade de benefícios para quem a consome, além de maravilhar gregos e troianos com os inúmeros produtos a serem extraídos de sua diversidade. Antigamente, a nata era um dos principais elementos na mesa dos nossos antepassados. Isso em razão da atividade braçal que desenvolviam. Hoje, com a atividade física restrita a algumas horas semanais na academia (muitos nem a isso se submetem), a nata entrou em rota de colisão com os manuais da moda, da estética, circunstância que vem tornando-a um indesejado membro da mesa contemporânea, algo a se evitar com unhas e dentes.
Entretanto, independente dessas questões, a nata representa o mais nobre da rica composição do leite, a seleção dos melhores elementos que dão estrutura à sua constituição. Com o tempo, o termo passou a designar o melhor de um contexto, a nomeação dos melhores componentes de um universo que se quer determinar. Daí que hoje se fala da nata dos músicos, dos médicos, dos cientistas, dos artistas, dos... Enfim, do melhor que se quer designar em um extrato social específico. Nesse contexto, seria natural que tivéssemos a nata das lideranças, a nata dos políticos, a nata dos homens públicos. Porém, sejamos sinceros: podemos designar como nata a liderança que hoje ocupa espaços públicos no Brasil? Voltemos à nata – a do leite. Pois esta, com toda excelência de sua composição, se não for bem cuidada, bem conservada, estraga, azeda, vencida por bactérias, fungos, vírus e germes de toda ordem.
Alguma semelhança com o ambiente político do qual fazemos parte? Os saudosistas, com alguma razão, afirmam que não se faz mais lideranças como as de antigamente. E apregoam os nomes de Bonifácio, Mauá, Rio Banco, Prudente, Getúlio, Prestes, Juscelino, Aranha... Segundo os tais, que lideranças! Desonestidade nelas não havia; corrução nem pensar; tibieza, frouxidão de caráter também estavam fora do agir de então. Firmes, honestas, patriotas, assim eram nossas lideranças. Ou, por outra, assim eram os que compunham a nata de nossas instituições. Hoje, o verme da corrução, a bactéria da desonestidade, o germe da insensibilidade, da insensatez, do desatino são os elementos que, preferencialmente, entram no perfil do que se convencionou chamar de líder. Costumes em frangalhos; hábitos em decomposição; escândalos infecciosos, tecido azedo pelo quadro patogênico que se estabeleceu.
Os entendidos em nata dizem que para salvá-la das impurezas tem solução. Lavá-la na água é uma. Outros, de mais rigor no diagnóstico, recomendam levá-la ao fogo. Agravante: após o fogo ela perde a qualidade de nata e, entre outros produtos, vira manteiga. Já no tocante às lideranças, a receita da água e do fogo deve ser bem analisada. Submeter, por exemplo, o político corruto à lavagem em água não é recomendável. Pois, dela, o gajo sai mais refrescado, mais asseado, porém com o interior sujo do mesmo jeito. Já o fogo deve se levar em conta. O fogo do voto, bem entendido. Esse sim, o remédio eficaz para a parte infectada do tecido. O fogo do voto depura, promove mudanças... Além de poder ser utilizado vezes sem conta. Com ele não se faz manteiga. Mas as instituições melhoram bastante. E, afinal, o que fazer se da nata das nossas lideranças não se consegue manteiga? Ah, quanta nata azeda...
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