Reconciliação e despedia
Por Walter de Sá Leitão sobre João
Lins Caldas.
Um importante depoimento póstumo, de
uma figura do Assu inteligente, chamado Walter de Sá Leitão, para um gênio filósofo
chamado João Lins Caldas. Vejamos para o nosso deleite:
Há cinco anos, mais ou menos, o velho
e amigo João Lins Caldas limitara nossa amizade a saudações e cumprimentos
simples e – não poucas vezes – estas cortesias eram para ele um
constrangimento.
Por muitos frequentara a nossa casa,
diariamente, sentindo-se à vontade, contando-me dramas da sua vida, atitudes
que tomara em certos e determinados casos, especialmente como funcionário
público, e, por fim, recitando seus formidáveis poemas e sonetos. Na sua
espetacular inteligência, havia um ponto característico dos poetas – “as
imaginações” – que lhe produziram um gênio tempestivo e absoluto para viver,
anormalmente, entre os seus semelhantes. Uma simples conversa que divergisse do
seu ponto de vista, em relação especialmente a determinadas pessoas, era o bastante
para multiplicar o número dos seus desafetos, acrescido do dialogante.
Reconhecendo-o POETA, sonhador, portando, jamais considerei suas denúncias,
acusações ou julgamentos aqueles por quem se dizia prejudicado. Isto lhe
causava um mal estar, cujos efeitos eu minorava contando-lhe anedotas picantes,
piadas, impúdicas e ele, o velho Caldas, sem arrefecer os ódios, retira-se
anotando-me no seu caderno como um indigno, também. Distanciava-se de mim,
torcia caminhos para não me encontrar, porém eu o procurava, intrometia-me nos
ambientes onde ele comparecia e, assim, ia amenizando sua intolerância, sem
conseguir modificar suas sentenças.
Como poeta era sublime, vibrações,
divinais; um disco de sonatas infindas que quanto mais se ouvia, mais desejos
se tinha de continuar ouvindo. No cotidiano da vida, era humano...
Ontem, dia 18, as seis horas da
manhã, caminhávamos em direção ao Mercado Público, quando, em frente à Padaria
Santa Cruz, os nossos caminhos cruzara-se e eu, na minha teimosia para tê-lo
amigo, provoquei o diálogo:
- Bom dia, Frutilândia!...
- Bom dia, Walter, preciso falar com
você.
- Caldas, voltarei logo para lhe
atender.
Voltei minutos depois, indo
encontra-lo na Praça da Criança, comprando uma espiga de milho verde. Ao ver-me
reiniciou o diálogo:
- Walter, você tem recebido notícias
ou carta de Moacir?
- Não, depois da última estadia aqui
não me deu notícias nem me escreveu.
- A mim, também não. Parece que está
zangado porque não lhe dei resposta às últimas cartas. Mas, vou respondê-las.
Preciso demais comunicar certos desejos e, fatos da minha vida, sobretudo
porque o meu fim está chegando e só a ele poderei contar, sabe!
- Caldas, a sua saúde, como vai? Tem
tomado os remédios e seguido a dieta?
- Não, comecei a tomar umas pílulas,
porém as suspendi. Depois de liquidar meus negócios irei cuidar da doença. O
meu mal são estas coisas...
- Tens ouvido ou lido alguma coisa?
- Ouvido, não, Caldas, porém estou
lendo um grande livro sobre Hermes Fontes, escrito por Povina Cavalcanti e
dirigido por Afonso Arinos de Mélo Franco.
- Ah! Quero vê-lo. Preciso ler. O
Hermes, como já lhe contei, morreu rompido comigo. Hoje, ou melhor, depois é
que, reconheci ser um mal entendido meu. Seria fácil, Walter, emprestar-me este
livro, agora?
- Pois não, Caldas, vou mandar
busca-lo.
Minutos depois, chegava o portador
trazendo o livro.
- Pronto Caldas, aqui o livro.
Com o livro às mãos começou a
folheá-lo e, ao deparar em uma das páginas o retrato de Hermes, fitou-o bem e
exclamou: “Hermes! Hermes!... Breve a nossa reconciliação espiritual.”
Despedimo-nos, ele saiu com o livro
na mão e a cesta na outra. Partiu para completar a sua feira e, horas depois,
completava também a sua vida atribulada de poeta e sonhador.
DEUS o tenha lá, com menos
imaginações humanas!
Assu, 19 de maio de 1967
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